A violência doméstica ronda os lares de milhares de mulheres. Quase sempre, vem acompanhada pela culpa e a vergonha. Infelizmente, o ciclo dessa violência começa com atitudes que representam baixo risco de morte, como discussões, ciúmes, proibições aparentemente banais, evoluindo para xingamentos, humilhações e atos isolados de agressões físicas. Nesta fase, as vítimas dificilmente denunciam ou procuram ajuda, por uma série de motivos, mas principalmente, por acreditarem que o companheiro pode mudar. Em situações mais graves, a denúncia não ocorre por intimidação do agressor, que muitas vezes faz ameaças de morte contra a vítima, os próprios filhos ou mesmo outros familiares.
Em Araucária, o Projeto RenovAção, criado em fevereiro de 2020, unificou a rede de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica. A iniciativa tem a participação das seguintes estruturas estaduais: Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia Civil (Delegacia da Mulher), e municipais: Guarda Municipal; Secretaria de Assistência Social (Centro de Referência de Atendimento à Mulher – CRAM), Assistência Judiciária, Conselho da Comunidade e secretarias municipais de Educação e Saúde. Os resultados tem sido positivos.
A Patrulha Maria da Penha, que faz parte dessa rede, também exerce um papel fundamental no contexto de atendimentos e proteção às vítimas. Desde sua criação, em 2018, já acompanhou cerca de 1.500 mulheres, tendo realizado no primeiro semestre de 2021, aproximadamente 2.500 atendimentos. A Patrulha, composta por guardas municipais, acompanha as mulheres com medida protetiva no município de Araucária, além de realizar ações informativas e preventivas. Promove proteção, mas também o empoderamento das mulheres através da informação.
O CRAM, órgão importante da rede de proteção, tem como papel principal, atender as mulheres em situação de violência, em suas necessidades de informação, orientação, apoio social, emocional e jurídico e encaminhamentos, sempre respeitando a autonomia e vontade de cada uma delas. Atua com o objetivo primordial de romper o ciclo de violência doméstica e transgeracional, bem como, prevenir a ocorrência de novos episódios de violência.
“Durante a pandemia não paramos em nenhum momento, e para a proteção das mulheres atendidas e da equipe, priorizamos os atendimentos nas modalidades remotas: telefone, vídeo chamada e mensagens de Whatsapp. Os atendimentos presenciais e em visitas domiciliares também continuam sendo feitos, nos casos mais graves, que envolvem riscos. Ainda assim, houve um aumento no número de casos de violência contra a mulher durante a pandemia”, explicou o CRAM.
O Centro acrescentou que a parceria com a Guarda Municipal, em especial a Patrulha Maria da Penha, foi fortalecida nesse período. “Recebemos para busca ativa, todos os boletins de ocorrência da GM que envolvem situações de violência doméstica. Trabalhamos de forma articulada com toda a rede de proteção do município: Assistência Social, da qual fazemos parte, Saúde, Segurança Pública, Educação, Ministério Público, Judiciário, Conselho Tutelar e demais órgãos de atendimento e defesa de direitos”, pontuou o CRAM.
Serviço
O CRAM atende de segunda a sexta-feira, das 8h às 12h e das 13h às 17h, o telefone para contato e whatsapp é o (41) 3901-5162. Situações de emergência envolvendo violência doméstica, a Guarda Municipal deve ser acionada, pelo fone 153.
População ainda desconhece o Sinal Vermelho como pedido de ajuda das vítimas
Os números de denúncias de violência doméstica aumentaram significativamente na pandemia e os índices de feminicídio cresceram de forma preocupantes nesse período. Para impedir que esses índices continuem a evoluir, o Conselho Nacional de Justiça se uniu à Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e lançaram, há cerca de um ano, a campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica. Em junho deste ano, a campanha deu mais um passo importante para se tornar lei nacional, após a Câmara dos Deputados aprovar o Projeto de Lei n. 741/2021, que cria o programa Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica. Caberá ao Poder Executivo – em conjunto com o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e os órgãos de segurança pública – firmar cooperação com as entidades privadas para implementar o programa. Atualmente, a campanha Sinal Vermelho já se tornou lei estadual em 10 estados: Alagoas, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe. O projeto de lei federal será agora enviado ao Senado.
O objetivo é incentivar as mulheres a denunciarem situações de violência e a obterem ajuda em órgãos públicos, entidades privadas e comércios. O sinal “X” feito com batom vermelho (ou qualquer outro material) na palma da mão ou em um pedaço de papel, o que for mais fácil, permitirá que a pessoa que atende reconheça que aquela mulher foi vítima de violência doméstica e, assim, promova o acionamento da Guarda Municipal ou Polícia Militar. Em seguida, se possível, conduz a vítima a um espaço reservado, para aguardar a chegada da polícia. Se a vítima disser que não quer a polícia naquele momento, entenda. Para a segurança de todos e o sucesso da operação, sigilo e discrição são muito importantes. A pessoa atendente não será chamada à delegacia para servir de testemunha.
Falta divulgação
Apesar de a campanha Sinal Vermelho já ter mais de um ano, é desconhecida para a grande maioria da população. Para mostrar que ainda há muita falta de informação a respeito, a jornalista do Jornal O Popular, Katty Ferreira, acompanhada pelo diretor da Patrulha Maria da Penha, Jackson Leoni, visitou alguns comércios da região central. A jornalista pintou um X vermelho na mão, entrou nas lojas simulando ser uma cliente, e em determinado momento, de forma reservada, mostrou o sinal. E agora você vai acompanhar como foram as reações dos funcionários (a pedido deles, os nomes dos comércios não serão mencionados).
No primeiro comércio, uma farmácia, a farmacêutica reconheceu, levou uma companheira até o fundo da loja e ficou lá. Demorou um pouco, então a jornalista avisou o diretor Leoni. Sem se identificar, ele abordou a farmacêutica e perguntou se a “cliente” tinha mostrado algum sinal. Ela ficou sem saber o que fazer. O sinal foi mostrado novamente e o diretor então se apresentou e explicou o significado. “Eu reconheci o sinal, mas não fazia ideia de como ajudar. Fiquei muito nervosa, exatamente por saber o que significava, mas realmente não sabia qual era o protocolo”, disse a farmacêutica
No segundo comércio, a jornalista fez o mesmo procedimento. Mostrou o sinal e pediu para ver um produto. Mostrou uma segunda vez e a atendente fingiu que não viu. Leoni se aproximou e novamente perguntou se a “cliente” tinha mostrado alguma coisa pra ela, e a moça negou na hora. O sinal foi mostrado novamente e a funcionária riu, sem graça. “Nunca tinha visto esse sinal. Nem sabia o que significava, então não liguei muito”, falou a vendedora. Outra funcionária que estava no balcão de pagamento também comentou: “Não estava acompanhando o atendimento, mas saberia identificar o sinal. Só não faço ideia do que fazer, pra quem ligar. É muito sério e a gente deveria estar preparada”.
No terceiro comércio, a jornalista chegou, cumprimentou a atendente e logo mostrou o sinal. A moça não esboçou nenhuma reação. Ao ser abordada pelo diretor da Patrulha, disse que não reconheceu o X vermelho. “Nunca ouvi falar sobre isso. Nem passou pela minha cabeça que era um pedido de ajuda”, justificou.
No quarto comércio, a jornalista entrou e pediu para ver algumas peças de roupas. Enquanto era atendida pela funcionária, mostrou a mão com o sinal. A funcionária da loja também não apresentou qualquer sinal de reconhecimento. Quando o GM Leoni se apresentou, ela falou: “Ah, o sinal na mão! Reconheci quando vocês se apresentaram, lembrei que tinha visto na internet uma foto, mas não cheguei a ler a matéria. Achamos que nunca vai acontecer com a gente, no nosso local de trabalho. É muito importante que falem sobre isso, porque eu não saberia como ajudar. Talvez anotando o número dela, falando que ia enviar as peças ou algo assim”, argumentou a moça.
No quinto comércio, assim que foi atendida, a jornalista mostrou o sinal e disse que queria ver um produto. A atendente encarou o sinal, mas ficou pensativa. Um atendente do sexo masculino interferiu e mostrou o corredor onde estaria o produto que a “cliente” procurava. Não esboçou qualquer tentativa de ajuda. Leoni perguntou para a funcionária se a “cliente” tinha mostrado algum sinal, ela pensou um pouco, depois negou. “Eu achei que você estava com a mão suja de alguma coisa, aí não perguntei. Não reconheci mesmo. Sei daquelas histórias em bares, onde a moça escreve em um guardanapo o pedido de ajuda, mas esse eu nunca tinha visto. Caso eu tivesse reconhecido, teria chamado ela lá pra cima, com a desculpa de mostrar outra opção de brinquedo e perguntaria se poderia ajudar de algum jeito. É bom que façam mesmo uma divulgação do sinal vermelho, porque às vezes é o único jeito das vítimas pedirem ajuda e a gente não sabe como ajudar”, comentou a atendente.
“Eu não tinha visto, mas mesmo que ela me mostrasse, eu não ia reconhecer. Acho difícil conseguir ajudar quando a mulher está acompanhada do cara, porque esses homens são doentes. Não iam deixá-la ficar sozinha com a gente. Mas isso de explicar sobre o sinal é muito bom, porque eu mesma nunca tinha visto”, falou o outro atendente.
Em briga de marido e mulher, se mete a colher, sim!
Quinta-feira, 22 de julho, é o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. Este tipo de crime no Brasil só foi legalmente tipificado em 2015, com a Lei nº 13.104. Antes disso, a violência de gênero era respaldada pela Lei nº 11.340 de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Esses são dois mecanismos importantes no combate à violência, mas que estão longe de resolver o que hoje já é considerado uma segunda pandemia no país. E aquela história de que “não é comigo, não vou me envolver” e “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, que ao longo de décadas oprimiu mulheres e se naturalizou na sociedade, tem que mudar. Porque é somente através de denúncias, seja de terceiros ou das próprias vítimas, que essas atrocidades serão reduzidas.
Das feridas expostas, à cura!
Durante uma década ela sofreu calada as agressões por parte do marido. Foi dominada pelo medo das constantes ameaças de morte. Esta é a história da enfermeira Marceli, 30 anos, uma das milhares de mulheres vítimas da violência doméstica. “A primeira agressão aconteceu quando eu estava grávida de cinco meses. Trabalhava em uma UBS e lá fiquei durante cinco anos. Iniciei um curso de enfermagem em 2017, e as coisas pioraram. Meu ex-marido não queria mais trabalhar. Eu sustentava a casa sozinha e ainda por cima sofria várias agressões. Meu filho era uma criança retraída, porque também apanhava muito”, relata.
No dia 7 de fevereiro de 2018, ela conta ter vivido um dos seus piores momentos. Chegou em casa do trabalho por volta das 17h, e o ex-marido havia vendido seu microondas e uma bicicleta, porque tinham cortado a água da casa. “Fiquei revoltada e falei que que ele deveria arrumar um emprego. Ele me bateu muito, apanhei de todas as formas e meu filho presenciou tudo. Me manteve presa no quarto durante uma noite toda, me agredindo. Quando amanheceu o dia, fui trabalhar. Meus colegas viram os hematomas e disseram que eu não tinha mais que aguentar aquilo.
Chamaram a assistência social e fomos para a Delegacia da Mulher. Cheguei nervosa, chorava demais, não conseguia falar direito, porque estava muito preocupada com meu filho que estava em casa. Veio a Guarda Municipal, Conselho Tutelar e começou a reviravolta. Fomos até minha casa, meu filho estava trancado dentro do quarto e os conselheiros o tiraram de lá. A GM prendeu meu ex-marido em flagrante e ele foi encaminhado para a Delegacia de Polícia Civil de Araucária. Dali, nunca mais o vi”, recorda Marceli.
O agressor foi condenado por cárcere privado, Lei Maria da Penha e tortura, contra a ex-esposa e o próprio filho. “Fiz acompanhamentos com psicólogos do CRAM, meu filho foi assistido pelo SECRIA. Ele dizia que ia me matar se um dia eu o denunciasse, por isso me calei. O juiz perguntou porque fiquei tanto tempo com ele, disse que não acreditava na Lei Maria da Penha. Hoje penso diferente, pois tudo que precisei da Lei, eu tive”, contou a enfermeira, que encoraja outras mulheres a denunciarem as agressões.
Da violência extrema, à lição de vida!
Chocante também é a história da Cláudia Mara Souza, 46 anos. Ela sofreu agressões em dois relacionamentos. No seu primeiro casamento, com o pai das três filhas, e com um homem com quem se relacionou depois da separação. “Lembro que a primeira agressão foi quando a nossa filha do meio estava com seis meses. Ele ficou agressivo por causa de uma discussão e chegou até a pegar uma faca. Fiquei tão assustada com tudo aquilo e com o que poderia acontecer que me calei. Ao invés de contar, disse pra minha mãe que estava tudo bem e ficou por isso mesmo. Depois disso, veio uma sucessão de agressões, cada vez mais fortes. Mais tarde descobri traições e ainda o perdoei. Era um relacionamento doentio, acabou se tornando um ciclo. E assim, 17 anos se passaram”, disse.
Quando a última filha nasceu, Cláudia decidiu tomar a decisão de acabar com tudo. “Na época, não fiz nenhuma denúncia, só nos separamos. Durante um ano da separação ele ainda ficou insistindo pra gente voltar e eu não queria mais aquilo. Hoje fazem 13 anos que somos separados, não nos falamos. Fui viver minha vida com traumas, me sentindo um lixo, me achando a pior mulher do mundo”, relatou.
Após alguns anos, Cláudia se envolveu com uma outra pessoa, que era do seu círculo de amigos. Segundo ela, era um homem maravilhoso, totalmente diferente do seu ex-marido. “Me enganei mais uma vez. Estávamos voltando de um evento e ele acabou bebendo e estava correndo demais com o carro. Pedia pra ele parar, porque ele ia bater e acabar nos matando. Ele mandava eu calar a boca. Quando pedi pra descer, me golpeou com vários chutes e socos, na cabeça, no rosto, onde ele acertava. Arrumei as coisas dele pela manhã, pedi pra que fosse embora e ele me agrediu de novo, pegou uma faca. Fiquei horrorizada, achei que ia acontecer o pior. Minha ex-sogra e minha filha me socorreram. Fiz o boletim de ocorrência e pedi a medida protetiva. Passados seis meses, eu já morando em outra casa, ele chegou bêbado, dizendo que queria falar comigo, ver minha filha. Invadiu a casa, me agrediu muito. Parentes me socorreram, porque a polícia não apareceu. Fiz o B.O, não fui bem atendida, não fui acolhida. Me senti pior. Ele não foi preso por invasão, não foi preso por descumprir a medida protetiva, por nada. “Sobrevivi e falar sobre isso hoje, me fortalece. Tenho uma vida nova. Estou casada há dois anos e vivo um relacionamento saudável. Acredito no amor, ele cura, salva e faz milagres”.
Texto: Maurenn Bernardo com colaboração de Katty Ferreira
Publicado na edição 1271 – 22/07/2021