18 de maio foi o Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data, que é lembrada todos os anos no país, com ações e campanhas de conscientização, também evidencia uma realidade cruel: o número cada vez maior de crianças e adolescentes abusados dentro do próprio lar, um lugar que deveria ser de proteção e não de ameaça. Por ano, o Brasil registra 500 mil casos de exploração sexual contra crianças e adolescentes, ocupando o segundo lugar nesse triste ranking, perdendo apenas para a Tailândia.
Segundo dados do Sistema Nacional de Informação e Agravos de Notificação Obrigatória – SINAN, em 2020, Araucária tem registro oficial de 11 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes na faixa etária de menos de um ano a 19 anos. Em 2021 (até 11 de maio), os índices já são 25 casos. Ainda no levantamento do SINAN, a grande maioria das vítimas são meninas entre 10 a 14 anos, e 70% dos abusadores, pasmem, são pessoas conhecidas, como padrastos, os próprios pais, se estendendo para tios, primos, namorados, mas sempre pessoas inseridas no núcleo familiar.
Os dados assustam, principalmente se considerarmos a dificuldade em identificar a maioria dos abusos, ainda na fase inicial. Nesse contexto, a conselheira tutelar Patrícia Soares, reafirma a importância de os pais ou mesmo pessoas próximas e professores, observarem o comportamento das crianças e adolescentes. “Às vezes é possível observar pelos sinais, não só a violência sexual, mas outras formas de violência. As vítimas passam a ficar mais retraídas, e o rendimento escolar muda muito. O humor oscila, elas ficam mais chorosas ou mais agressivas, sentem medo, vergonha, medo de toque, algumas crianças sentem medo quando alguém toca em seu corpo. Em caso de adolescente, a automutilação pode ser um sinal, assim como manchas pelo corpo, inchaços e outras lesões”, alerta a conselheira.
Ela também reforça a importância da denúncia mesmo que o abuso seja apenas uma suspeita mínima. “Quando o Conselho recebe a denúncia, o primeiro passo é ir em busca da vítima e garantir a ela que esteja protegida, em sua família ou em outras formas de proteção. Em seguida é realizado boletim de ocorrência, exames no IML e todas as vítimas ou suspeitas passam por atendimento psicológico no CREAS. Registrar o boletim de ocorrência é obrigatório”, orienta.
O gatilho da pandemia
Com a pandemia, as crianças passaram a ficar mais tempo em casa, e muitas vezes, sob a responsabilidade dos seus abusadores, que se aproveitam da sua vulnerabilidade. “Houve aumento também dos casos onde o abuso iniciou através de conversas de rede social. As crianças que ficam muito tempo sozinhas em casa e com acesso às redes sociais também são alvos fáceis para esse tipo de criminoso”, observou a conselheira.
Ele lembra ainda que, infelizmente, muitos abusos não são denunciados, por falta de coragem, e os agressores acabam não sendo punidos ou mesmo afastados das vítimas. “Os agentes públicos que trabalham diretamente com essas situações estão sendo constantemente capacitados, a fim de saber identificar e não ter receio de realizar as denúncias. Para a população, temos feito muitos apelos, através de blitzes educativas, reuniões, palestras, enfim, tudo que conscientize as pessoas de que é muito importante denunciar. Mas esse ainda é um trabalho a longo prazo, que temos que fazer sempre”, pontuou a conselheira. A escola, de acordo com ela, é um local onde a criança se sente segura, e na pandemia, sem esse apoio e proteção, é certo que muitos crimes estão acontecendo e não estão sendo registrados. “Por isso precisamos tanto da ajuda da população”, pede.
O promotor da Vara da Infância e Juventude de Araucária, David Kerber de Aguiar, compartilha da mesma opinião, ao reforçar que no Brasil, aproximadamente 90% dos casos de violência contra crianças e adolescentes são realizadas no ambiente familiar e que o distanciamento social imposto em razão da pandemia potencializa essa triste condição, seja pelo aumento do período de convivência com o agressor, seja em razão dos serviços que denunciam a ocorrência desses casos, como por exemplo as escolas, estarem com as atividades presenciais suspensas.
“Infelizmente a subnotificação sempre existiu, muitas vezes em razão do agressor ser um dos cuidadores da criança, pelo medo de denunciar dos familiares, da comunidade ou dos vizinhos, ou pelo simples fato de desacreditarem indevidamente na fala da criança”, ressalta.
Responsabilidade de todos
De acordo com o promotor, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a proteção e efetivação dos direitos do público infanto-juvenil. “Logo, com o distanciamento dos serviços que rotineiramente atendiam presencialmente crianças e adolescentes, a comunidade onde elas estão inseridas, especialmente os vizinhos mais próximos, tem o papel de proteção revigorado”, adverte.
O promotor também reforça que em Araucária, o Ministério Público estabeleceu forte trabalho em Rede de Proteção, com atuação articulada com o Conselho Tutelar e equipamentos da Assistência Social, da Saúde e da Educação, em prol de uma apuração com agilidade de eventuais violações, observando as peculiaridades do público infanto-juventil. “O Conselho Tutelar é acionado em todos os casos de violação de direitos de crianças e adolescentes, que imediatamente aciona o Ministério Público, caso seja necessário o acolhimento institucional da vítima, prisão ou afastamento da residência do agressor, ou outras medidas que exijam determinação judicial. Caso necessário, a criança ou adolescente é imediatamente encaminhado aos serviços de assistência social (CREAS) e de saúde (entre eles o SECRIA). Ainda no âmbito da proteção ocorrem frequentes reuniões de trabalho com os demais órgãos de proteção, visando averiguar o seu regular funcionamento, além de rever protocolos de atendimento e aprimorá-los quando necessário. O Município também realizada escuta especializada das vítimas quando necessário, em modelo humanizado e que evita revitimização com oitivas reiteradas desnecessárias por órgãos diversos de atendimento, comunicando igualmente o Ministério Público e o Conselho Tutelar para acompanhar a situação de risco quando ela ainda não foi superada. No plano da responsabilização criminal do agressor, Araucária hoje tem a oitiva de crianças e adolescentes realizada na forma de Depoimento Especial junto ao Fórum, que é intermediada por psicólogo, mantendo a vítima fora do ambiente de audiência judicial comum. A existência dos equipamentos necessários e a devida articulação entre os órgãos envolvidos, constitui na principal estratégia do Ministério Público no combate às violências contra crianças e adolescentes”, explicou o promotor.
Tipos de violência
a) Violência sexual: constitui-se de atos praticados com finalidade sexual que, por serem lesivos ao corpo e à mente do sujeito violado (crianças e adolescentes), desrespeitam os direitos e as garantias individuais como liberdade, respeito e dignidade previstas na Lei n° 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (Arts. 7°,15, 16, 17 e 19);
b) Abuso sexual: caracteriza-se por qualquer ação de interesse sexual de um ou mais adultos em relação a uma criança ou adolescente, podendo ocorrer tanto no âmbito intra-familiar – relação entre pessoas que tenham laços afetivos -, quanto no âmbito extra-familiar – relação entre pessoas desconhecidas;
c) Exploração sexual: caracteriza-se pela relação mercantil, por intermédio do comércio do corpo/sexo, por meios coercitivos ou não, e se expressa de quatro formas: pornografia, tráfico, turismo sexual e prostituição.
Abusos deixam sequelas para o resto da vida
Abusos deixam sequelas para o resto da vida
O trauma na vida de uma criança ou adolescente vítima de exploração e abuso sexual pode durar para o resto da vida. Os efeitos psicológicos desses abusos podem ser devastadores e persistirem na vida adulta dessas crianças e jovens. Quando submetidas a essa violação inominável, as vítimas podem apresentar tristeza constante, prostração, sonolência diurna, além histórico de fugas, comportamento sexual adiantado para idade, entre outros problemas. A maioria das vítimas só consegue se recuperar após muitos anos de terapia. A seguir, você acompanha histórias de abuso que aconteceram em Araucária e que são chocantes. Os nomes dos personagens são fictícios.
A adolescente *Julia era usada em rituais religiosos. Aos 8 anos de idade ela começou a ser iniciada nos rituais, e um dos requisitos era fazer sexo com os líderes religiosos. Estes, após o ato sexual, negavam que eram eles que faziam, e diziam não se lembrar de nada. Isso durou dos 8 anos até os 14 anos da adolescente. *Julia contou que pedia pra que a mãe não a levasse nos locais, mas ela insistia que era necessário. Durante todos esses anos, a mãe foi conivente com a situação. Até que *Julia conseguiu pedir ajuda para a madrinha, que imediatamente buscou o Conselho Tutelar. A adolescente passou pela escuta especializada e o crime foi constatado. Hoje *Julia reside com a família extensa, passa por acompanhamento psicológico, e todos os componentes que praticavam as violências, inclusive a mãe, foram denunciados criminalmente.
*Ana tinha só 7 anos e ara abusada pelo próprio pai. A mãe desconfiou dos abusos quando percebeu que a filha estava mais quieta, com medo e chorava muito sem expressar o motivo. A mãe ficou incomodada e resolveu investigar. Um dia ela fingiu que iria sair para trabalhar, mas ela não foi. Pelos buracos das paredes da casa, ela viu quando próprio pai obrigou a filha a ter relação sexual com ele. A mãe, desesperada, pediu ajuda dos vizinhos, e eles seguraram o abusador até a chegada da polícia. O homem foi preso em flagrante. Durante o atendimento, *Ana chorava muito, com medo do que pudesse acontecer com o pai. Ela dizia que não queria que acontecesse nada de mal com ele.
*Bruna tem 14 anos. Ela começou a ser abusada quanto tinha 10 anos. O namorado da avó dela, um idoso de 62 anos, a apalpava, e logo que ela completou 12 anos, e teve a primeira menstruação, o namorado da avó passou a ter relação sexual com ela. Ela tinha só 14 anos quando engravidou. Foi dessa forma que a família descobriu os abusos, e descobriu também que o abusador já estava fazendo a mesma coisa com as irmãs mais novas da *Bruna. A adolescente dizia que a avó trabalhava de noite e durante o dia dormia, e era nesse período que aconteciam os abusos. O agressor ameaçava matar a *Bruna e toda sua família, caso ela contasse pra alguém. Quando os fatos vieram à tona e foi registrado o boletim de ocorrência, o abusador foi embora da cidade. As sequelas psicológicas na vida da *Bruna foram imensas, ela não entendia que aquilo era violência, acreditava que era forma de afeto e que o abusador era carinhoso com ela. Por vezes ela chorava, sentindo falta do abusador. “Bruna teve que fazer psicoterapia por um longo período, para reparar o dano psicológico causado por esta violência.
Com apenas 5 meses, a tia da *Mariana desconfiou que ela poderia estar sendo abusada pelo próprio pai. Ao trocar as fraldas da bebê, a tia percebeu um inchaço e sangramento. Levou a criança imediatamente para o Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, e o abuso foi confirmado. Os pais da *Mariana são usuários de drogas, e em várias circunstâncias, negligenciaram a criança. *Mariana agora está segura, sob a responsabilidade da família extensa, e o caso segue em processo na Vara Criminal.
Araucária faz campanha para combate ao abuso e exploração sexual infantil
Em menção à data 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, neste mês de maio foram realizadas algumas ações integradas entre a Secretaria Municipal de Assistência Social, Conselho Tutelar, Secretarias de Saúde, Educação e de Segurança Pública para conscientização e alerta do problema. Foram organizadas blitze para conscientização com relação aos direitos da criança e do adolescente, onde foram passadas orientações sobre denúncias e distribuídos adesivos da campanha.
Diversos estabelecimentos comerciais também foram contemplados na campanha, incluindo bares e boates, restaurantes, motéis e postos de gasolina próximos à rodovia. “Divulgamos nossos números para denúncias e pedimos apoio da população em qualquer suspeita de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes”, comenta a conselheira Tutelar Patrícia Soares.
Canais de denúncia
Casos de violência contra crianças e adolescentes podem ser denunciados, de forma anônima, nos seguintes telefones, a qualquer hora do dia:
Conselho Tutelar – área Leste: 3901- 5323 e 99922-1323
Conselho Tutelar – área Oeste: 3901-5365 e 99922-1243
Polícia Militar: 190
Disk Denúncia: 100
Guarda Municipal: 153 (ou baixe o APP 153 Cidadão)
Texto: Maurenn Bernardo
Publicado na edição 1262 – 20/05/2021