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Eu estou morto. Já começo com essa observação. Metodicamente, começo pelo final. Não é novidade. Machado, que tive a oportunidade ler, plagio. Soube que está na moda, agora. Mas, se tiver paciência, talvez lhe interesse. É uma pequena história, para outros, vulgar, mas a mim assombra, e só me livro se a contar. Eu era menino. Nasci em um local, com nome de Lobo (Vulf), na Polônia. Hoje não tem no mapa. Aliás, nem sei se esteve. É que, para quem não sabe, em 1910, quando vim, a Polônia, estava anexada, nessa parte, ao império Austro-Húngaro. E, vim a saber depois, que tinha sido o imperador, um parente do tal Dom Pedro II, no Brasil.

Portanto, como disse, estou morto. Jamais escreveria com cento e dez anos, embora os poloneses durem muito. Mas, uma vez nascido, do amor de meus pais, vi uma guerra brutal, da qual tenho pouca lembrança. Tinha apenas oito anos quando acabou. O sofrimento foi grande. Meus pais, Teodoro e Barbina, me disseram: vá ser marinheiro. Aqui não há futuro, somos pobres. Mal conseguimos sustentar seus outros irmãos. E essa guerra, não acabou, virá outra, sentimos.

Em Gdanski, diziam eles. Vá para lá. Agora é nosso porto, polonês, depois da guerra. Para lá fui. Cidade livre, um lugar chamado corredor polonês. Os alemães, que tiveram que ceder, com ódio, à Polônia essa terra, a chamavam Danzig. Pagamento de guerra. Um tal tratado de Versalhes. Nela, aprendi os ofícios do mar. Marinheiro, como meus pais queriam, virei. Os alemães de lá, não gostavam de mim, nem eu deles. Nunca soube o motivo. Aos 17 anos, conheci o mundo. Fui à China, conheci suas maravilhas. À grande América, o país livre. Aprendi línguas. Português inclusive, por isso escrevo, mesmo depois de morto. Conheci aqui, o Brasil; sua capital, o Rio de Janeiro: adorei suas praias.

Podia, com a minha liberdade conquistada, ter um amor em cada porto; eu era feliz. E talvez até filhos tenha tido, que não conheci. Paixões, muitas. Mas aqui, no ponto, a razão do desabafo. Nenhuma das paixões, como ela, única, que me recuso, mesmo morto, a dizer seu nome. Ela, também de passagem no Rio, no porto, precisava registrar-se; era uma imigrante: polonesa. Enfeitiçado, não sei direito como, dirigi-me a ela. Disse-me, com uma voz suave, que iria com sua família, a uns parentes no Sul do Brasil, não sabia onde. Morar, vida nova, plantar em terras muito férteis. E já tinha noivo, sua vida era certa. Foi numa dessas descidas de navio; ela era linda, de olhos azuis, cabelos claros, sorrido discreto. Na minha terra, que havia tantas, nenhuma, era tão encantadora. Eu senti que gostou de mim, e me apresentei. Era especial, seu cheiro, o andar, as tranças no cabelo. Eu disse que embora tivesse nascido em terra, vivia no mar. Ela sorriu, enrubesceu. Minha alma sentiu que deveria me enraizar. Propus: abandono essa vida e vou junto. Como não? Ela me deu esperança: tudo era possível. Suas mãos, sensíveis, ao encostarem-se às minhas, meu coração foi tocado. Um abraço, que jamais recebi tão sincero, me cativou. Ao respirar seu cheiro, sentir seu rosto, não resisti: nossos lábios se tocaram. Um beijo, amoroso e verdadeiro, querido por ambos, que jamais esqueci. O disparo do coração, o nervosismo das mãos e a sinceridade do momento foram interrompidos; seus pais nos disseram: jamais, um marinheiro? Você está noiva. Ela, muito mais sagaz que eu, disse sim, mas terá que ir atrás. Termino tudo. Mas só quando estiver com meus parentes. Trabalharei num lugar chamado ‘Gayerovo’, de um theco, se gosta de mim, irá achar. É no sul, disseram meus pais. Um abraço, de despedida, também surpreendente, pela promessa que significava, recebi.

Impossível esquecê-la. Até hoje, morto, tenho sua imagem na alma. Eu abandonaria os navios, e seria, enfim, um homem feliz. Voltei a Gdanski. Dar baixa, retirar documentos. Voltei ao mar. A maldade dos homens, sem fim, fez com que meu porto, onde deveria dizer um final adeus, para o compromisso assumido, desaparecesse. A guerra, de novo. Invadiram o pequeno corredor ao mar. O polonês. Eu, só 29 anos, e vejo a morte assombrar meu País, outra vez. Sou convocado. Se é polonês, tem que lutar: venha. Tinha experiência, como mecânico de navios, fui para um mercante, o Nova Zelândia. Deveria abastecer os exércitos aliados.

O meu navio foi atacado pelas forças do eixo. Submarino, difícil encontrá-los. Tão destruidores. Vêm do escondido do mar, como aqueles pensamentos, do fundo da alma: nos atingem e sucumbimos. Era na costa da África. Atlântico. No ataque, uma granada me atingiu. Sim: uma explosão. Desmaiei de dor. Morri? Ainda não. O sangue, vermelho, como as cores da minha bandeira, jorrava em meu rosto, minha barriga. O médico de bordo me socorre. Você foi atingido, diz. Para sempre uma lesão. Mas está vivo. Agradeça. Entro em delírio, delírios de outro, o leitor não merece. Deixo para lá. Avanço: estamos a pique. Se prepare, sobreviveu à granada. Talvez afogados, pereçamos todos. Foi o que me disse o médico. Agoniado, lembrei dela, e disse a mim, Deus salvará.

Não foi tão fácil. Oito dias no mar. Dezessete em um bote-motor. Falavam: esse não tem jeito, dirigindo-se a mim, já como moribundo. Sem comida. A água, só de chuva. Um navio aliado nos socorreu. Um alívio. E levaria ao Brasil, o novo país contra o eixo. Ganharam uma empresa, siderúrgica, soube depois, do grande irmão América. O senhor Vargas, presidente, exigiu. Ele tinha mais simpatia pelos alemães e italianos, até japoneses. Alguns ministros seus também. Mas, aliados se declararam. Deixaram os eixistas para lá. Depois descobri, o Brasil tem colonização dos Portugueses. Eles sempre dialogavam com todo o mundo. Nunca entendi. Como assim? Sem inimigos? Eu cresci, com vários inimigos. Russos, alemães, austríacos, sérvios, letônios, ucraínos. Era estranho não os ter, inimigos. Um país sem oponentes?

Bem, a história é um pouco longa e não os quero cansar numa única sentada. Então, retomo o assunto na próxima semana. Até lá!

Publicado na edição 1280 – 23/09/2021

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