Os rituais antropofágicos movidos pelo amor, onde pais devoraram seus filhos, netos devoravam seus avós, filhos devoravam seus pais, irmãos devoravam seus irmãos em rituais fúnebres, causaram imenso estranhamento entre luso-brasileiros e holandeses do período colonial.
Para muitos europeus da época, a antropofagia tratava-se de um hábito alimentar dos indígenas que aqui viviam. A existência de duas categorias de antropofagia, a vingativa e a amorosa, só dificultava o entendimento dos brancos.
Enquanto tribos Tupis, notadamente os Tupinambá, praticavam a antropofagia movidos pela vingança contra seus inimigos de gerações, outros grupos, genericamente conhecidos como Tapuias, praticavam a antropofagia movida pelo amor, devorando seus familiares queridos.
Tapuias era como os Tupis chamavam os indígenas de outros troncos linguísticos, que, via de regra, viviam mais para o interior do Brasil, longe dos colonizadores, e que, portanto, não se submeteram aos desmandos dos europeus. Acabou se tornando um termo pejorativo adotado pelos colonizadores para se referir aos indígenas considerados selvagens.
Dentre os tapuias, uma tribo que se destacou, foi a dos indígenas Tarairiu, que tinham por costume devorar seus entes queridos. Costumo brincar com os meus alunos, que os Tarairiu ficaram chocados quando souberam que os brancos enterravam seus familiares, um verdadeiro desperdício de gente.
De acordo com o professor Ronald Raminelli, da Universidade Federal Fluminense, ao nascer uma criança, a mãe devorava o cordão umbilical e a placenta na forma de um cozido. No caso de aborto, ou quando uma criança morria ainda pequena, tinha a cabeça cortada e o corpo retalhado, preparada numa espécie de panela. Nas palavras do historiador “Muitos parentes eram convidados para o evento e juntos comiam a falecida. Ao término da refeição, punham-se a gritar e a chorar.”
O responsável por retalhar os corpos era o sacerdote da aldeia. As idosas acendiam a fogueira, enquanto os amigos e familiares choravam a perda da sua pessoa amada.
Os chefes das aldeias, quando morriam, também eram devorados por chefes de outras aldeias, em sinal de respeito. As esposas chegavam a raspar a carne dos maridos mortos até os ossos, como prova de amor. Até os cabelos e ossos eram reduzidos a pó e consumidos em rituais solenes. Nada era desperdiçado. Para os Tarairiu, terminar no ventre dos familiares era muito mais digno do que ser enterrado no ventre da Mãe Terra.
A pintura escolhida para ilustrar o artigo foi feita por volta de 1641, pelo holandês Albert Eckhout, que veio para o Brasil junto com Maurício de Nassau durante a Segunda Invasão Holandesa (1630-1654), vivendo aqui entre 1637-1644. Chama-se “Retrato de uma mulher Tapuya com partes do corpo humano” e pode ser que as mãos decepadas que ela trás no cesto e na mão direita sejam de um familiar saudoso, pai, irmão ou filho.
Trata-se de uma indígena da tribo dos tarairiu, que, embora não aceitassem a dominação dos colonizadores, por pragmatismo, haviam se unido aos holandeses contra os portugueses, seus inimigos de muitas gerações.
Referência: RAMINELLI, Ronald. Canibalismo em nome do amor. In: Nossa História. Ano 2, n° 17, março de 2005, pp. 26-31.
Edição n.º 1451.