Há alguns anos, ainda era possível encontrar livros didáticos de História com narrativas sobre rituais antropofágicos que ocorriam em territórios que hoje formam o Brasil.
Com o passar dos anos, essas histórias foram sendo “canceladas” dos manuais didáticos. Talvez as editoras tenham receio de serem acusadas de retratar os povos indígenas do passado como selvagens, afeitos à deglutição dos seus inimigos e que, por isso, teriam merecido passar pelos horrores da colonização.
Em tempos de polarização ideológica, todo cuidado é pouco. A própria forma de se referir aos humanos que já habitavam muito antes da chegada dos europeus mudou, agora não se fala mais índio, mas sim indígena. Fica a dica.
No entanto, simplesmente deixar de estudar sobre a antropofagia que de fato acontecia pode acabar sendo um tiro no pé. Afinal, se os estudantes não tiverem a oportunidade de aprender sobre o tema de forma responsável nas escolas, acabam ouvindo falar por outros meios, por exemplo, por canais eivados pelo ódio doutrinário, com forte apelo estético e que têm como principal objetivo justificar o massacre dos oprimidos.
Por outro lado, as narrativas sobre os rituais antropofágicos que eram apresentadas pelos manuais, frequentemente se centravam nos casos dos rituais de vingança, não considerando que também havia casos de povos que devoram aqueles a quem amavam.
Os rituais de vingança eram mais comuns entre indígenas do tronco Tupi, como no caso dos Tupinambá (é singular mesmo), e existem vários relatos de canibalismo ocorridos entre os atuais territórios de São Paulo e da região nordeste.
Especificamente nesses casos, o guerreiro inimigo capturado em combate era levado à aldeia, onde inicialmente sofria com insultos e agressões, principalmente por mulheres da aldeia. Passado o frenesi inicial o indivíduo recebia uma indígena em casamento e era bem tratado por todos. No pescoço, passava a usar uma corda que marcava a data em que seria morto. Podia ficar semanas, ou até anos, vivendo nessa aldeia até a data determinada.
O ritual antropofágico durava quase uma semana. No dia marcado, era simulada uma fuga do guerreiro, que, ao ser recapturado, tinha seu corpo preparado com pinturas, penas e cascas de ovos, e não tinha a intenção de fugir. Afinal, ser devorado pelo seu inimigo era considerado prova de extrema bravura. Alguns indígenas acreditavam que, ao se banquetear de um bravo guerreiro, seriam agraciados com sua valentia. Há até o relato de um indígena que chorou ao lembrar que tinha deixado seu pai cego na floresta, e que por isso foi libertado por seus inimigos, por considerá-lo covarde.
É importante esclarecer que o guerreiro que seria devorado participava ativamente de toda teatralidade, com a repetição de fórmulas conhecidas, onde falas que se referiam a ele como “o bravo guerreiro da aldeia xis, que mataste e devoraste muitos dos nossos”, sendo replicados por ele com a confirmação de que “sou bravo guerreiro da aldeia xis que mataste e devorantes muitos dos seus”. Tudo dentro do script.
O guerreiro era morto com um golpe de um tacape especial, produzido ritualisticamente para a ocasião. O corpo era preparado para ser assado e escaldado, com o ânus fechado por um bastão, para evitar a saída dos excrementos. O sangue era bebido ainda quente. Ao ser aberta a barriga, o corpo era dividido, e todos na aldeia, incluindo crianças, idosos, mulheres, homens adultos, jovens e até bebês participavam do banquete do corpo e sangue do inimigo.
Os rituais foram sendo abandonados principalmente porque os europeus ocuparam o lugar dos seus inimigos de muitas gerações. Na próxima edição, trataremos dos rituais antropofágicos de afetividade, realizados por amor.
Para saber mais sobre o tema indicamos o excelente livro de Eduardo Bueno “Brasil: uma história” que serviu de base para esse artigo.
Edição n.º 1449.