Estou com fome. Não é uma fome sofrida, de quem passa fome. É fome de quem acordou há mais de uma hora e ainda não tomou café. Não consigo comer logo que me levanto. É uma fome não sofrida, uma fome ordinária, uma fome comum que antecede a refeição. A refeição se aproxima: desci agora do ônibus e estou fazendo a pé as quadras finais, entre o ponto de ônibus e o meu local de trabalho.
Lá tem café, pão, e coisas. A vaquinha que fazemos é suficiente para que todos os dias a mesa tenha queijo, salame, presunto, pães de mais de um tipo, pão de queijo, leite, café, bolachas. Cada um contribui só com um pouco e mesmo assim o café é sempre recheado.
A vaquinha inclui não só o aporte financeiro, mas também o revezamento pela responsabilidade de comprar os víveres. Hoje não é meu dia. Se fosse meu dia eu desceria uma quadra a mais e compraria no mercado mesmo, e não nessa padaria aqui, essa com nome chique, no bairro nobre, para comprar os mantimentos.
Os empregados que circulam no bairro nobre só são nobres quando se trata da nobreza de caráter, aqueles que o têm, e tendo-o o mantêm reto e, assim, nobre. Aquela outra forma de definir a nobreza, aquela que preconiza que quanto mais comprido o conteúdo de uma conta bancária mais nobre é seu titular, essa nobreza falta à maior parte dos transeuntes do bairro.
Assim como a definição do que é chique. É chique a padaria, os clientes e funcionários fingem ser: porque trabalham em bairro nobre precisam portar-se de forma e vestimentas chiques, falar de um jeito chique, tratar com pronome caprichado, tudo porque seus patrões assim o desejam, essa padaria precisa demonstrar que não é para qualquer um, na postura e no preço. Cobra-se caro pelo pão na padaria chique do bairro nobre.
Mas hoje não é meu dia de comprar as coisas e por isso nem mesmo preparei o dinheiro no montante certo ou pelo menos aproximado da compra. Hoje eu passo reto pela padoca, apenas olho sua fachada e penso que o pão virá por outro colega, de outro estabelecimento, afinal vêm ao bairro gentes de outras periferias, por afluentes diversos. Há outros vendedores de pão em seus caminhos.
Passo reto pelo mercado também. Mas na esquina da quadra de baixo a coincidência encontra o pensamento: uma moça parada na esquina em frente a uma mesinha em que estão empilhados pães caseiros. O sinal está fechado para pedestres. Ela vê que me aproximo e sorri:
– Quer comprar pão, moço?
– Não, obrigado – respondo.
– Não gosta de pão?
– Gosto sim.
– Não está com fome?
– Até que estou, mas nem mesmo tenho dinheiro aqui.
– Pega, moço, pode levar esse pão.
Publicado na edição 1157 – 04/04/2019