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No bairro ainda vazio reconhe­cíamos todos os poucos moradores de longe. Tudo era mato, rua de chão, descampado e sol, e como fazia sol aquela época. No chão de pedra e pó os pés descalços criavam uma casca dura por baixo, entre um gol e outro. E tinha o bar, a única casa que já estava ali quando chegamos: o bar do Seu Zé.

Era no bar do Seu Zé que comprávamos a gasosa entre um jogo e outro, entre uma briga e outra, entre uma chuva e outra – quando o sol dava trégua.

Foi no bar do Seu Zé que jogamos fliperama a primeira vez, ao custo de vinte e cinco centavos a ficha. Quando um dia as fichas acabaram durante uma fase crítica, Seu Zé me deu mais duas fichas para tentar completar a fase. Não consegui, mesmo assim. Era um jogo difícil. Foi no bar do Seu Zé que jogamos também sinuca e pebolim a primeira vez.

Um dia decidimos fazer um piquenique em um terreno baldio próximo. Cada um colaborou com o que podia, e ele nos deu alguns pacotinhos de ki-suco para complementar nossa luxuosa mesa. Havia uma geleia branca e vermelha que adorávamos, e vendo nosso olhar pedinte deixou que também levássemos algumas.

Cresci no bairro com sua presença. Nos primeiros anos, dentro do bar, vendendo e anotando as compras dos bêbados da região em sua caderneta. Nos últimos, sentadinho em frente ao bar que já nem era mais bar há muito tempo, sua natureza calma observando os passantes, as pessoas de casa e da vizinhança.

Ia Seu Zé sempre muito formal à igreja e ao bingo, sempre de camisa, sempre sério e sempre gentil. Sua esposa, o oposto: sempre risonha, de vestido, colorida. Viveram por mais de 60 anos juntos. Vê-los juntos era ver o amor.

Seu Zé era parte do bairro, mas era como se o bairro fosse também parte dele. Quando morreu, na semana passada, é como se tivesse levado um pouco do Santa Regina junto. Há algo na minha rua, que já não é minha há muito tempo, que é agora ainda menos familiar, ainda menos minha, ainda menos rua.

Ô, Seu Zé. Queria eu poder ter te dado mais duas fichas pra você passar por essa fase difícil. Mas vai lá, que está na hora. Descansa daqui, que o mundo já não é bonito como era antigamente e não merece mais de presente nem o suquinho de dez centavos.

Que a vizinhança que se cons­truiu a seu redor, casa a casa, cerca a cerca, neto a neto, guarde sua memória como a de um familiar que se foi, porque quando se vive assim tanto tempo tão perto é como se fosse mesmo. Obrigado por ter existido, Seu Zé.

Publicado na edição 1155 – 21/03/2019

Seu Zé

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