Após relatos feitos por uma jovem cuja amiga adolescente vive em um suposto relacionamento abusivo, o tema entrou em discussão e teve grande repercussão nas redes sociais em Araucária. Mas não demorou muito e o post foi apagado pela autora, a pedido da própria vítima. A autora novamente foi às redes sociais e justificou o fato, lamentando que, mais uma vez, a amiga teria sido ludibriada pelo próprio abusador. Para a autora do post, apesar de a amiga se recusar a sair do relacionamento, estar psicologicamente afetada e não ter coragem de denunciar o companheiro, a exposição do caso serviu de alerta para meninas e meninos que talvez estejam vivendo dentro de uma relação não saudável. E também trouxe à tona o problema vivido pela jovem araucariense, a exemplo de milhares de outras meninas e meninos vítimas de abusos, que também não tem coragem de sair do relacionamento.
Apesar de nos últimos anos o tema ter tido muita visibilidade, o número de ocorrências de abusos contra crianças e jovens não para de crescer. A psicóloga Angelica Soraya Krzyzanovski explica que o relacionamento abusivo traz consequências muitas vezes irreparáveis na vida das vítimas. E lamentavelmente, muitas delas demoram para perceber que estão sendo abusadas. “O problema é que quando pensamos em relacionamento abusivo, normalmente o que vem à cabeça é uma relação com agressões físicas, no entanto, as agressões psicológicas e morais acabam causando os mesmos danos. Infelizmente as pessoas só se dão conta de que estão em um relacionamento abusivo quando o mesmo já atingiu um nível muito crítico”, pontua.
Conforme afirma a psicóloga, alguns sinais que podem ajudar as vítimas a identificarem um relacionamento abusivo costumam vir muito antes da violência física. “Um desses sinais é o ciúme excessivo. Mas é claro que o abusador sempre vai argumentar que ama demais, que o ciúme é normal, tentando justificar o que ele está fazendo. Ele começa a controlar tudo que a pessoa faz e fala, invade sua privacidade e ainda tenta afastar a vítima das pessoas próximas. Já presenciei muitos casos de relacionamentos onde o abusador afasta a pessoa da família, não deixa falar com amigos, ou seja, a pessoa vai ficando sozinha, começa a não ter com quem contar. Também já ouvi que as pessoas tinham vergonha de falar sobre tudo isso, porque perceberam muito tarde, não se atentaram aos sinais iniciais. Ainda tem a chantagem, a manipulação, onde a vítima é chantageada, onde o abusador ameaça se matar se ela o largar ou se ela fizer tal coisa ele irá privá-la de algo”, esclarece.
Também são consequências de um relacionamento abusivo a invalidação dos sentimentos da pessoa e a diminuição da sua autoestima. “Sem dúvida, a violência física é a fase mais crítica, começa com um simples empurrão, um apertão e aí vai tomando uma proporção grande, até se tornar realmente uma agressão ainda mais séria, onde surgem os socos, tapas, chegando ao extremo de morte. O que deve ficar claro é que nada justifica a violência, seja ela psicológica ou física. Por isso a importância de buscar ajuda. Temos hoje vários canais disponíveis para amparar essas vítimas. Quando se trata de menor, é ainda mais urgente buscar apoio, falar sobre o assunto com os pais e amigos, sem ter vergonha. Nem sempre as pessoas que estão dentro do relacionamento abusivo conseguem enxergar uma saída. Os adolescentes tem uma tendência a esconder as coisas dos pais e o abusador quando mais velho, se aproveita disso e ainda faz ameaças e manipula a vítima, no sentido de impedi-la a contar o que se passa. Os pais devem ficar atentos a esses sinais”, conclui a psicóloga.
A importância do acompanhamento às famílias das vítimas
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) também tem sido uma ferramenta importante no acolhimento, orientação e acompanhamento das famílias e indivíduos em situação de violação de direitos. O papel do órgão é fortalecer e reconstruir os vínculos familiares e comunitários. É no CREAs, por exemplo, que são atendidos e monitorados os casos de relacionamentos abusivos envolvendo crianças e adolescentes, os quais são encaminhados pelo Conselho Tutelar.
A coordenadora do Centro, Rossana de Moraes Bueno, explica que as relações sexuais envolvendo menores de 13 anos, mesmo que consentidas pela criança, são consideradas estupro de vulnerável. Com vítimas de violência sexual acima de 13 anos, mas ainda sendo menores, o abusador também poderá responder criminalmente, dependendo do caso.
“Acompanhamos as vítimas e suas famílias, com ações protetivas, e conforme a gravidade do caso, encaminhamos ao Ministério Público. Hoje podemos dizer que de todos os casos que recebemos no CREAs, o maior índice está relacionado à violência sexual, não apenas de crianças e adolescentes, mas de adultos também, com vítimas mulheres, em disparada”, compara.
Serviço
O CREAs está localizado na avenida Brasil, 298, Centro e o telefone de contato é o 3901-5224.
Conselho Tutelar é a porta de entrada para as denúncias
Segundo o Conselho Tutelar de Araucária, os casos de relacionamentos abusivos envolvendo crianças e adolescentes vítimas de violência psicológica ou agressões por parte dos namorados são recorrentes. O grande problema, segundo o órgão, é as vítimas quase sempre demoram muito para perceber isso. “As próprias mães não percebem, só enxergam quando chega no extremo. Muitas ainda permitem o namoro achando que só pelo rapaz ser mais velho, ele vai exercer a função de proteção, que ele vai respeitar, que ele vai ser mais maduro, e isso não acontece. Depois acabam vendo o quanto os namorados sufocam as adolescentes”, comenta a conselheira Patrícia Soares.
O papel do Conselho Tutelar é orientar as vítimas que buscam ajuda, e em casos de violência, elas devem registrar boletim de ocorrência, e em alguns casos terá uma medida protetiva. “Quando chega nesse extremo de violência física, o relacionamento acaba e começam as ameaças. Por isso é necessário aplicar todas as medidas cabíveis como o registro da ocorrência, exame no IML, atendimento com psicólogo, encaminhamento para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Mas como essa decisão de denunciar costuma demorar, é muito importante que os pais falem mais sobre isso, para que fique evidente que os filhos não precisam passar por uma situação de violência. Já atendemos casos onde a mãe concordou com o relacionamento e ao perceber que era ruim, quis proibir e arrumou conflito com a filha. Então, a orientação é de que não sejam tão permissivos a ponto de a adolescente com 14 anos já dormir com frequência na casa do namorado, já viver um relacionamento quase de marido e mulher, com a família toda aceitando. Às vezes a adolescente acaba tendo uma responsabilidade que nem é dela em um relacionamento e as famílias ficam achando que isso é normal no namoro, e isso evolui para um relacionamento abusivo. Os pais não podem, jamais, colocar seus filhos em risco”, explica a conselheira.
O Conselho lembra ainda que, por mais que a lei permita que a partir dos 14 anos o adolescente possa namorar, ele ainda é imputável, não tem autonomia para tomar decisões. “Se o adolescente se sentir lesado, com seu direito violado, por exemplo, pode ser aberto um procedimento de investigação e o abusador responderá criminalmente. Mesmo que o agressor diga que não obrigou a companheira a fazer algo que ela não quisesse, ele pode tê-la induzido e ela sendo incapaz, ele se torna o culpado e pode até ser preso pela violência que causou”, esclarece Patrícia.
Ela recorda de um caso que foi atendido pelo Conselho, onde uma mãe registrou um boletim de ocorrência da filha, por que ela apareceu em casa com o pescoço todo marcado por chupões. Ela entendeu que aquilo era uma lesão, então ela fez o boletim, inclusive o namorado acabou sendo preso por estupro de vulnerável, isso porque ele também estava mantendo relações sexuais com a menina, que tinha apenas 13 anos. “O problema é que a mãe sabia disso fazia tempo, mas quando finalmente entendeu que era uma violência, resolveu tomar providência. Já tivemos muitos casos também de adolescentes que tentaram pedir o fim do relacionamento e o companheiro não quis aceitar, então elas tiveram que fazer o boletim de ocorrência na Delegacia e pedir medida protetiva, porque vinham sofrendo ameaças”, relatou Patrícia. Mesmo diante desse quadro preocupante, ela ressalta que a maioria dos casos pode ser evitado, quando há diálogo frequente entre pais e filhos.
Serviço
Os telefones do Conselho Tutelar para quem quiser fazer denúncias de abusos contra crianças e adolescentes são: Área Oeste 99922-1343.
Pais devem ficar atentos às mudanças de comportamentos dos filhos
A criança ou adolescente que está sofrendo algum tipo de abuso dentro de um relacionamento, seja ele psicológico, físico ou sexual, costuma apresentar mudança de comportamento. Às vezes eles demonstram ansiedade, angústia, e se isolam das pessoas. Também podem apresentar sintomas físicos como dores no corpo, descontrole urinário, aumento do sono e do apetite. O promotor da Vara da Infância e Juventude de Araucária, David Kerber de Aguiar, pontua que uma das principais características de um relacionamento abusivo é o afastamento da vítima do seu convívio familiar e comunitário, com um forte componente de violência psicológica, que vai destruindo aos poucos a autoestima e a dignidade da pessoa, o que é facilmente perceptível pela família.
“Normalmente não inicia com agressões físicas e isso não significa que é menos prejudicial. É importante que a família esteja atenta às alterações de comportamento dos jovens, causados por ciúme excessivo, controle e manipulação no modo de agir e de ser da adolescente, invasão da privacidade, entre outros. Quando identificada alguma dessas situações, a família deve procurar serviços de proteção e prevenção de violências, que muitas vezes além de orientar e acompanhar a vítima e familiares, indicará tratamento psicológico”, explana.
O promotor também citou uma ferramenta importante que pode auxiliar as famílias a reconhecerem sinais de que os filhos estão em um relacionamento abusivo. É a Cartilha Namoro Legal, elaborada pelo Ministério Público de São Paulo. A publicação traz dicas importantes sobre o tema e está disponível para download no file:///C:/Users/Lenovo/Downloads/NamoroLegal.pdf
Texto: Maurenn Bernardo
Publicado na edição 1243 – 17/12/2020