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Primeiro chega a notícia: vem à cidade um médico, um doutor milagroso que descobriu um tratamento único e definitivo para o vício da cachaça. Passou nas cidades anteriores deixando um rastro de novos sóbrios, famílias reunidas depois de anos, maridos sãos e esposas novamente dormindo tranquilas.

Um assistente do médico vem quinze dias antes, aluga uma sala no centro da minúscula cidade, como tantas da região. Uma folha impressa anuncia que ali atenderá o cientista milagreiro e o batedor passa a fazer o cadastro dos ébrios municipais. Como o vício na aguardente é coisa que pega fácil, a fila é longa: um bêbado após o outro, a lista vai se enchendo de trêmulos nomes, nomes que ao longo dos anos foram perdendo valor no carteado, no bilhar, no palheiro e na memória.

Mandam chamar Pedro: está na hora de você se curar, mas o médico só atende quando o paciente está mesmo disposto a se livrar da cana e admite que é viciado. Pedro reluta mas reconhece: precisa de ajuda.

Agenda cheia, é hora de vir à história o médico, e só vem de charrete porque isto é uma crônica: fosse eu um contista definitivamente colocava o figura em cima de uma liteira. Não sei de que cores eram suas roupas: vamos manter a tradição e vesti-lo de branco, mesmo em viagem.

Reúne-se já no primeiro dia com autoridades locais, curiosos, céticos que disfarçam o ceticismo e pacientes listados, ou familiares de alguns pacientes que, querendo aproveitar os últimos dias antes da cura, não se fazem presentes ao encontro. Expõe, com palavras simples, afinal não adianta utilizar o linguajar técnico com o povo leigo, como se dá a cura: após anos de extensa pesquisa, descobriu que atrás da orelha tem um nervo cuja utilidade ainda era desconhecida pela ciência.

Ao explorar, ele acabou descobrindo que o tal nervo liga o cérebro ao estômago e é responsável pela vontade de beber: o estômago fica com desejo e manda ao cérebro a ordem para que movimente músculos, mãos e moedas. Por isso a importância de que o paciente tenha certeza do que quer, já que após a cirurgia, que consiste no corte desse nervo, a pessoa nunca mais conseguirá ingerir uma única gota de álcool.

Pedro, atento, tem certeza do que quer. Quando entra no consultório sentindo o divino toque da mais pura ciência, é como se estivesse em uma banheira prestes a ser batizado, o médico limpa o local da cirurgia com álcool, esse cheiro que tanta alegria e tanto desgosto já deu a Pedro, a sua família deu só o desgosto, as mãos firmes do médico com o bisturi, anestesia local calculadamente aplicada a menor para o paciente sentir um pouco de dor, vem o corte, a dor é o mergulho, tudo agora vai mudar, o sangue escorre, o doutor rapidamente faz a costura dos pontos, Pedro respira com dificuldade, mas aliviado, depois de tanto esoterismo clínico.

Pedro viveu até quase 70 e nunca mais bebeu. Os céticos da cidade há muito desistiram de esperar uma recaída dos outros pacientes e se juntaram ao coro dos que até hoje sonham com a volta do médico para curar os novos bêbados da cidade.

Publicado na edição 1127 – 23/08/18

O médico que curava bêbados

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