Havia na rua uma casa cujo muro era aquele com uma cerquinha com pontas de ferro em cima, em formato de seta, com uma grama cortada bem certinha na frente, o que tornava o local ideal para ser a trave improvisada no futebol de rua. Nessa casa um senhor morava sozinho e ficava fora de casa o dia todo.

– Vão sujar o muro, diziam alguns adultos que nos viam jogando no local, então colocávamos o melhor goleiro (que, curiosamente, era goleiro dos dois times ao mesmo tempo – futebol de rua tem dessas) no gramado, para diminuir a possibilidade de a bola tocar o muro. Mas tocava. O goleiro era bom mas não era deus.

Quando a bola caía para dentro do terreno, escalávamos alguém para pular o muro e buscá-la. Como a casa ficava vazia durante o dia, o procedimento era simples e não havia medo de punição.

Até o dia em que, quando a bola caiu no jardim, o dono estava sorrateiramente espiando pela janela para ver o que faríamos. Esperou até que um de nós pulasse para dentro e saiu de casa, pegando nosso lateral direito no flagra, bola na mão, os demais jogadores, na rua, atônitos, sem chance de negar o que estava acontecendo.

Pensamos que ele furaria a bola ou amaldiçoaria nossas gerações vindouras, mas ele preferiu nos reunir, calmamente, e dizer que não estava bravo, apenas preocupado conosco, com nossa saúde, por pularmos a cerca. E contou a seguinte história:

“Uma vez um avião estava passando aqui em cima e dentro dele havia um menino olhando pela janela, tristemente o menino se descuidou e, como a janela estava aberta, ele foi puxado pelo vento para fora do avião, caindo justamente sobre esta cerca, e, como estava de pernas abertas na queda, seu genital foi arrancado, transformando-o em uma menina”.

Aquilo foi devastador para o grupo. Será que era imediato? A pessoa caía no chão e, quando levantava, já era menina? O que mudaria de prático nas nossas vidas se isso acontecesse? Teríamos que deixar de jogar futebol? Gostar de rosa? Fazer caderno de confidências? Era bom demais ser menino e aquele era um risco realmente considerável.

Nosso conhecimento sobre biologia e medicina não era tão amplo, você deve ter percebido.

O que foi uma pena: teria sido melhor se a gente não crescesse acreditando que virar menina era punição, ainda pior que a morte, para meninos malcriados.

 

Publicado na edição 1121 – 12/07/18

 

O risco