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Dirijo uma dúvida a meu catequista: se Deus está em todos os lugares, por que as pessoas precisam se abaixar quando passam em frente à caixa dourada que fica no altar? Ele me responde que dúvidas dessa natureza devem ser direcionadas ao Padre, que sabe mais de Deus que ele. Guardo a pergunta para a próxima missa.

No domingo, estou com os demais jovens preparando a igreja para a celebração quando Padre Aldo chega. Como de costume, antes de vestir a batina, reúne os jovens e adultos que estão no local, conta algumas piadas, decide algumas questões administrativas e se coloca à disposição para quem precisar de conforto, orientação ou só uma conversa casual.

Ainda não o vejo como um amigo: é O Padre, figura hierárquica, amigo de Deus, e eu uma criança, ainda aprendiz. Pergunto o que quero saber. Ele me responde com palavras simples, fala sobre símbolos, representações, significados, fé. Aceito a resposta, mas já não acredito. Conto a ele que meu catequista está me ensinando a tocar violão e que quero tocar na igreja. Ele diz para eu me preparar, na próxima missa devo levar o instrumento.

Pelos próximos quatro anos acompanho o Padre Aldo nas celebrações, na minha igreja e nas demais em que ele rezava missa. Mesmo eu tocando violão ele se refere a mim como O Gaiteiro. Muda a programação planejada, decide um repertório novo na hora, dá trabalho à banda. Não é incomum que suas missas sejam pontuadas por risadas, dele, da banda, dos fiéis. Tornamo-nos amigos, mas minha fé vai diminuindo com o tempo. Deixo de ir à igreja para rezar, mas continuo frequentando para conversar com o Padre.

Em um dia de muito sol vamos até o restaurante próximo da igreja Matriz e pedimos uma cerveja, ele aceita um copo. Ele me conta que sua mãe aprendeu a ler e escrever para poder se comunicar com ele enquanto estava no seminário, muitos anos atrás. Diz que outras pessoas atribuem a ele esse tipo de iluminação: assim como sua mãe encontrou a escrita, outros tantos dizem ter, por meio dele, encontrado Deus.

Ele aceita meu ateísmo, um pouco resignado mas sobretudo esperançoso para que eu um dia seja tocado por algum evento misterioso e divino que me leve a crer novamente. Sempre que falamos disso eu insisto que tudo começou quando eu não engoli a simbologia da hóstia na caixinha. Cada um é cada um, dizia o Padre.

Pouco tempo depois dessa conversa, a última que tivemos, Padre Aldo se mudou para outro Estado, para onde, fiquei sabendo, levou fé, aquele tipo de fé bonita que às vezes até mesmo os religiosos têm, de fazer o bem aos outros, mesmo que não se tenha certeza se Deus está olhando.

Em alguma curva qualquer, porém, Aldo piscou por um momento, ou tenha talvez piscado Deus, e eu perdi um amigo. Se Deus existe, o Padre era definitivamente um bom representante seu na Terra. Um bom pastor em uma época de maus pastores, tão sábio tanto bebendo o vinho cerimonial dentro da igreja quanto a despretensiosa cerveja fora dela.

Publicado na edição 1145 – 10/01/18

Padre Aldo

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