É difícil precisar quando exatamente aconteceu. Provavelmente, em algum ponto da década passada.

Uma certeza paira no ar: entre o início do declínio nas rodas de jogo e o silêncio das discussões acaloradas sobre lances de mestre – onde a perícia e o desempenho eram longamente debatidos em conversas que ecoavam pelas salas de aula –, não se passou sequer uma geração inteira, um ínfimo lapso temporal, para que essa tradição se esvaísse até se desintegrar por completo. Menos de 25 anos.

A lenda das últimas bolinhas de gude nos conta que tudo floresceu por mais de 200 gerações, por mais de 5.000 anos. Contudo, de repente, como um castelo de areia varrido pela maré, tudo se desfez, confirmando, de maneira melancólica, a profecia de Karl Marx proferida há mais de 150 anos: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.

Ironia do destino, esperávamos tal fragilidade de algo menos ancestral, talvez do próprio capitalismo. Mas a surpresa amarga nos atinge: aconteceu justamente com as bolinhas de gude, artefatos lúdicos mais antigos que as pirâmides do Egito! Para ilustrar, enquanto os construtores de Quéops empilhavam suas primeiras pedras colossais, as bolinhas já existiam há três séculos. Em contraste, o capitalismo, com seus mil anos de história, representa apenas um quinto da longevidade das apaixonantes bolinhas de gude.

A narrativa de como os jogos tradicionais com bolinhas de gude foram transmitidos de geração em geração é fascinante em sua lentidão e persistência. Era um trabalho de formiguinha, onde as crianças mais velhas instruíam as mais novas, um ciclo que deveria se perpetuar indefinidamente, cruzando fronteiras e continentes, levado nos bolsos de crianças migrantes, que carregavam consigo mundos em miniatura, exemplos da mais pura e refinada cultura lúdica.

Por se tratar de um bem imaterial, o aprendizado só florescia na interação entre as crianças, no convívio dos jogos. É claro que, por vezes, contava com a participação entusiasmada de algum adulto nostálgico. No antigo Império Romano, até mesmo o primeiro imperador, Caio Júlio César Otaviano Augusto, detinha seus passos nas ruas para observar as partidas, que, naquela época, eram disputadas com nozes.

Os materiais que davam forma a essas pequenas relíquias eram os mais diversos, fruto da inventividade infantil: argila moldável, ossos polidos, madeiras leves, pedras roladas, metal reluzente, vidro translúcido e tudo aquilo que a imaginação dos pequenos permitisse. Nozes, pérolas raras, avelãs saborosas, azeitonas lustrosas, castanhas robustas – a lista era infindável.

Introduzidas no Brasil pelos colonizadores portugueses, as bolinhas se popularizaram sob o nome de “gude”, em alusão às pedras arredondadas encontradas nos leitos dos rios da região do Minho, em Portugal, onde eram chamadas de “gode”.

Entretanto, mesmo dentro de um único país como o Brasil, a variedade de nomes surpreende. Em ordem alfabética, podemos evocar: baleba, bila, biloca, biroca, birosca ou bilosca, boleba ou bolega, bolinha de gude, bolita, bugalho, bulica ou búlica, burca ou burquinha, cabeçulinha ou cabiçulinha, clica, fubeca, guelas, peca ou pêca, peteca, pilica ou pinica, quilica, tilica, ximbra e tantos outros.

Hoje, mesmo nos corredores das maiores lojas de brinquedo, é um desafio encontrá-las, e muitos lares com crianças não guardam sequer uma solitária bolinha. É bem provável que você, caro leitor, tenha dificuldade em recordar a última vez que presenciou crianças absortas em jogos de búlica, cavando pequenos buracos com o punho, traçando linhas imaginárias, desenhando formas geométricas efêmeras no chão.

Na vasta família dos jogos e brincadeiras tradicionais, além das bolinhas de gude, outras irmãs enfrentam o risco de se tornarem meras lendas. Podemos citar a peteca, uma recreação indígena elevada a esporte, que também não vive seus dias de glória. Assim como a pipa, um passatempo que ecoa na China Antiga de 1200 a.C., e que encontra cada vez menos adeptos nos bairros e parques. Temos ainda o pião, tão ancestral quanto a bulica. Na antiga Mesopotâmia, esse pequeno bailarino de madeira já girava desde 3000 a.C., e na China, desde 2000 a.C. Atualmente, muitas crianças sequer conseguem fazê-lo dançar, por não terem desenvolvido as habilidades motoras e cognitivas essenciais para o impulso da mão que o liberta.

Muitos desses brinquedos outrora onipresentes rareiam nas prateleiras das grandes lojas do setor.
Talvez a causa resida na diminuição dos espaços públicos seguros onde as crianças podiam brincar sem a supervisão constante dos adultos. Talvez sejam as telas hipnotizantes dos celulares e dispositivos afins. Quem sabe a culpa seja nossa, de nossa relação conturbada com o tempo, sempre a nos apressar.

Só sei que, como professor, sinto uma profunda saudade das disputas infantis acirradas por um pião cobiçado ou por aquela bolinha de gude rara. Ah, se eu soubesse naquela época, teria valorizado cada instante daquela singela magia.

Edição n.º 1465.