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Imagem de destaque - Professor Rafael Jesus: As lendas, a vida em sociedade e o cemitério abandonado
Foto: Divulgação

As lendas sobre fantasmas, lobisomens, boitatás, dentre tantos outros seres fantásticos, prosperam entre nós por cumprirem com funções primordiais à vida em sociedade.

Esse mundo desconhecido pode começar a ser explicado por meio da imaginação, acontece que todos os seres imaginados, lendas e estórias partem de elementos concretos da realidade, por exemplo: os lobisomens são parte humanos, parte lobos, dois seres vivos reais. Portanto, todas essas lendas têm alguma ancoragem na realidade, têm algo de profundo sobre nós mesmos, que precisam ser desveladas para nos conhecermos melhor.

Outro aspecto importante é a função de alerta sobre a ordem natural e moral que são esperadas do nosso mundo. Nesse sentido os seres monstruosos seriam resultados de algum tipo de castigo divino, daí a sua degeneração biológica. Como nos ensinou o professor Romão Wachowicz, no livro Saga de Araucária:

“[…] para conservar a moralidade, não só entre os jovens, mas também entre os adultos, inventaram lendas apropriadas sobre boitatás e lobisomens.

O personagem folclórico boitatá é uma mulher pecadora, que faz penitência pelos pecados sexuais cometidos. […]

Lobisomem é um homem, cúmplice do pecado com o boitatá (p. 29).”

A própria Igreja e o próprio Estado se valeram e, até certo ponto, ainda se valem dessas lendas para incutir a obediência aos seus ordenamentos, muitas vezes amedrontando populações inteiras. Um bom exemplo são os casos das descrições difundidas sobre as espiritualidades de matrizes africanas e indígenas, não raro de forma depreciativa, numa evidente tentativa de normatização apenas do ocidente, do europeu, relegando todos os demais à superstição, à magia e à irracionalidade.

As lendas e suas relações com o medo e o prazer, a imaginação e a aprendizagem, o alerta e o castigo, são universais e resistem à modernidade, industrialização e urbanização por fazerem parte da nossa humanização.

O Cemitério Abandonado

Um caso exemplar sobre como as fantasias sempre têm alguma ancoragem na realidade, são as lendas sobre o antigo Cemitério Palhanos, aqui em Araucária, que nas décadas de 1960-70 foram amplamente divulgadas pela imprensa do Paraná, com seus fantasmas, enforcados e sangue fresco saindo dos túmulos.

Uma análise mais profunda nos remete a uma história que tem mais de dois séculos, sobre coroneis, política local, relações de dependência por parte dos caboclos, solidariedades e conflitos entre imigrantes e descendentes de europeus.

A História do Cemitério Abandonado, que também chegou a ser chamado de Terceiro Cemitério, fica ainda mais fascinante quando descobrimos que as colônias em Araucária de ucranianos e poloneses chegaram a compartilhá-lo por um certo tempo, até que  as divergências fronteiriças na Europa levaram os ucranianos a proibirem seus primos eslavos de enterrarem seus entes queridos no mesmo campo santo.

Foi então que os poloneses criaram seu próprio cemitério. Tempos depois os ucranianos também criaram outro cemitério. O Cemitério dos Palhanos acabou sendo abandonado pelos descendentes eslavos, fossem eles ortodoxos ou católicos. Os dois cemitérios criados após esse conflito, ucraniano e polonês, continuam sendo usados ainda hoje.

Por outro lado, o antigo Cemitério dos Palhanos ainda continuou sendo usado pelos locais menos favorecidos por um certo tempo, até ser definitivamente abandonado. Desde então as lendas foram sendo criadas e recriadas, unindo realidade às ficções que povoam o nosso imaginário.

Recentemente, determinada igreja chegou a explorar as lendas sobre o cemitério para advertir seus fieis sobre quais formas de viver são adequadas ou inadequadas, causando medo entre muitos.

Conhecer as Histórias por trás das lendas pode ser um exercício fundamental de metacognição, superando superstições e usos inconfessáveis dos mal-intencionados.

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