Promotor e delegada falam sobre a cultura do estupro

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Quando falamos em estupro, imediatamente pensamos em um crime bárbaro. Pensamos nas mulheres que já foram vítimas da violência sexual e também naquelas que, em algum momento da vida, já sofreram ameaças. Pior ainda, pensamos que esse temor pode estar presente em circunstâncias corriqueiras, como andar sozinha em uma rua mal iluminada ou estar dentro de um ônibus à noite.

Recentemente, dois casos hediondos de estupro, trouxeram esse tipo de violência à tona. O assunto tomou conta da mídia e das redes sociais. São os crimes da adolescente de 16 anos que foi violentada por um grupo de 33 homens no Rio de Janeiro e teve vídeos da agressão expostos pu­blicamente e, no Piauí, uma outra adolescente de 17 anos, que foi violentada por quatro menores e um homem de 18 anos.

Nos dois casos, o que espantou foi a reação de naturalidade com que os agressores trataram seus crimes. Os episódios também trouxeram à tona discussões acaloradas sobre a chamada cultura do estupro (em que as pessoas acabam naturalizando e aceitando algumas violências em relação à mulher). Isso incentivou movimentos feministas e pelos direitos humanos a fazerem campanhas contra esta cultura.

O promotor da Infância e Juventude de Araucária, David Kerber de Aguiar, disse que, após acompanhar o assunto, especialmente pelas redes sociais, concluiu que existe sim uma indevida culpabilização da vítima. “Mas como alguém que não tem desejo de realizar sexo com outro pode ser culpada? Veja bem, cada um daqueles que estão lendo agora essa resposta, achariam normal ou adequado praticar qualquer ato libidinoso com um terceiro, não querendo, só porque este quer? Tenho certeza que a resposta é não, sendo esse exatamente o ponto que interessa no caso do Rio de Janeiro”, pontuou.

Já a delegada Juliana Maciel Busato Dalacqua, titular da De­legacia da Mulher e do Adolescente de Araucária, preferiu não emitir opinião sobre a situação, sem ter acesso aos elementos constantes no inquérito policial. “O que posso dizer é que o papel da Polícia é buscar a verdade dos fatos sem prejulgamentos ou preconceitos de qualquer natureza. Cada caso deve ser analisado com imparcialidade e a devida sensibilidade por parte dos policiais. Sinceramente, não creio que exista no Brasil uma verdadeira cultura do estupro e tampouco a banalização de tal crime. O estupro é um crime considerado hediondo não só pela lei, mas acredito que também pela esmagadora maioria da população, que clama pela punição exemplar de casos desta natureza”, explicou.

Segundo a delegada, embora tenha se verificado nas últimas décadas, um movimento de fortalecimento dos direitos das mulheres, ainda persiste certo preconceito em relação ao gênero feminino. “Não há como negar que o machismo persiste em certo grau na sociedade brasileira. A igualdade de gêneros consagrada pela Constituição Federal de 1988 e por diversos tratados internacionais, ainda não se verifica de forma plena em nosso contexto. O receio de reviver a violência ao relatá-la às autoridades, a incerteza quanto à efetiva punição do agressor, medo de retaliação e os sentimentos de culpa e humilhação também são motivos que levam as vítimas a não delatarem seus abusadores”, comentou a delegada.

Ainda de acordo com ela, a Lei Maria da Penha, foi um importante avanço legislativo à proteção da mulher vítima de violência doméstica ou familiar, e sua ampla divulgação faz com que cada vez mais mulheres busquem a ajuda do Estado.

O promotor David complementa a opinião, afirmando que muitas vezes a falta de apoio familiar faz com que a vítima não denuncie o agressor. “A vítima esquece que a vergonha pelo ato, quem deve ter, é única e exclusivamente o abusador. O único culpado pelo estupro é – e tão somente é – o estuprador. Honestamente não vejo nenhuma razão para se tratar a vítima como culpada. Mas no plano legal, o que posso afirmar, é que não há margens para culpar absurdamente uma mulher vítima de estupro em razão de suas opções pretéritas ou preferências de vida”, destacou o promotor.

Por outro lado, o promotor acredita que a legislação em favor da mulher avançou com um incremento na pena, que traz em termos de reprovação penal, um maior reforço aos aplicadores do direito da hediondez desse tipo de crime.

Amparo na Lei

A alteração legislativa promovida pela lei 12015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando o crime de “estupro de vulnerável” (consistente em ter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos, com quem por enfermidade ou doença mental não tem o necessário discernimento para a pratica do ato, ou que, por qualquer outra causa não possa oferecer resistência).

Sobre esta mudança, o promotor e a delegada divergem nas opiniões. “Em minha opinião, a alteração legislativa foi importante, contudo, mudanças na lei não são suficientes para, por si só, reduzir os casos de violência sexual, devendo somar-se à conscientização da população e à implementação de medidas nas áreas social e educacional”, pontuou a delegada.

“Além de buscar uma cons­cientização, essa interpretação atende ao superior interesse das crianças e adolescentes a terem seu desenvolvimento físico e psicológico respeitados. Estudos apontam que crianças e adolescentes ainda não tem maturidade biológica e psicológica para consentir com qualquer atividade sexual. Assim, o direito penal atua nesse caso para proteger o estágio peculiar em que se encontra crianças e adolescentes até 14 anos. Além de necessária, essa previsão penal tem o condão de advertir aos adultos que serão responsabilizados trazendo o feito preventivo necessário e reduzindo a incidência criminosa”, destacou o promotor.

Papel das redes sociais

Quando se fala sobre o papel das redes sociais, promotor e de­legada são unânimes em afirmar que, se bem utilizadas, as redes sociais podem servir como importantes instrumentos de cons­cientização e prevenção. “Por outro lado, se indevidamente utilizadas, podem acabar expondo demasiadamente crianças e adolescentes, sujeitando-os à ação de pessoas mal intencionadas. Por isso, é muito importante que os pais e responsáveis controlem constantemente o uso das redes sociais por seus filhos”, destacou a delegada Juliana.

“Acredito o papel que a im­prensa vem realizando hoje, de ‘tocar na ferida’, trazendo temas que não deveriam ser tratados como tabu, aliado às redes sociais que os repercutem, certamente constitui importante caminho para que o tema tenha a devida atenção e com isso não se repitam fatos tristes como os de um estupro coletivo”, arrematou o promotor.

Ele acrescentou que em Arau­cária, o Poder Judiciário desenvolve um programa chamado “Justiça também se Aprende na Escola”, que entre outros fins, também tira dúvidas sobre este tema nas escolas locais.

Escuta especial

O depoimento especial utilizado na escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência já é realidade em Araucária. A metodologia diferenciada de escuta judicial, executada por uma equipe multidisciplinar, com intuito de minimizar a revitimização da criança ou adolescente, vem sendo utilizado desde agosto e, segundo o psicólogo judiciário Dorivan Schmitt, tem proporcionado uma melhora acentuada na oitiva das vítimas.

“O depoimento especial trouxe mais agilidade aos processos, a criança é ouvida em ambiente separado da sala de audiências e isso traz mais segurança, privacidade, conforto e condições de acolhimento. A vítima não fica exposta como numa audiência normal, não se sente pressionada”, explica Dorivan, que fez um curso de capacitação para o uso do protocolo de entrevista do National Institute of Child Health and Development (NICHD), para atuar em entrevistas investigativas com crianças.

Segundo ele, desde que o programa passou a ser utilizado em Araucária, aproximadamente 27 vítimas já foram ouvidas. “É importante ressaltar que a criança é ouvida em uma sala separada, mas tudo que se passa durante o depoimento é transmitido, como em uma videoconferência, para a sala de audiências, e acompanhado por juízes, promotores e advogados. “O depoimento também fica gravado, evitando que a criança precise passar novamente pelo constrangimento de ser ouvida. Explicamos para o menor que tudo que for falado, será ouvido na sala de audiências, e ele precisa concordar com isso”, acrescentou Dorivan.

O programa, que já existe em outras cidades do país, foi trazido para Araucária a partir de um termo de cooperação entre promotores, juízes, defensores públicos, delegado de polícia, representantes da OAB e do Conselho Tutelar e psicólogos judiciários.

Casos de violência podem ser denunciados através dos canais

Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República – 100
Secretaria de Política para Mulheres – 180
Polícia Civil – 3614-0500
Polícia Militar – 190

Texto: Maurenn Bernardo / FOTO: Everson Santos

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