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O garoto só chuta com a esquerda. Seu amigo, só com a direita. Cidade do interior, de campinho ruim. Lugar em que se uma bola boa é luxo, chuteira no pé é ostentação. Mas os amigos estão na loja, ambos desejosos do par de chuteiras exposto na vitrine improvisada. Nenhum dos dois tem o dinheiro necessário para comprar o par. Mas juntando o dinheiro dos dois já é possível.

É possível até mesmo imaginar o que os dois garotos debateram no momento em que se deram conta disso, ali, parados, olhando o par de chuteiras sonhado, antes inacessível, mas agora ao alcance das mãos. Ou pelo menos de uma mão, já que a outra chuteira estaria ao alcance não da outra mão, mas da mão do outro.

Negócio irresistível feito, a divisão é simples: quem for jogar no dia fica com o par e lava depois. Se os dois atletas tiverem jogo no mesmo dia, cada um fica com o pé que chuta a bola calçado e o outro pé descalço. Outros tempos.

A FIFA na época era insensível demais a dramas dessa natureza e não tinha dó de coincidir datas oficiais. A coisa era entre a cruz e a espada para jogadores empenhados e leais a seus times. Pra ajudar, os dois meninos, embora amigos fora das quadras, eram rivais quando o apito soava, e não foram poucas as vezes em que as travas de tão simbólicas chuteiras foras direcionadas às canelas um do outro – de forma não muito simbólica.

Entre os demais integrantes dos times a chuteira solo não era motivo de chacota: o pé descalço era igual, e ninguém ri dos iguais. O pé calçado era o meio luxo, causava meia inveja, meio orgulho, meia admiração. No campeonato daquele ano, a cidade de Nova Esperança do Sudoeste acompanhou o desempenho futebolístico de um futuro morador de Araucária semi calçado – não sei onde foi morar na vida adulta o detentor do pé direito.

Pois os meninos cresceram, formaram família, tiveram filhos – o canhoto se tornaria meu pai vários anos depois, e tomaria gosto por reunir os mais próximos nos domingos, tratar com amor seus netos, contar histórias antigas sobre quilômetros andados a pé na infância, com os dois pés nus, e campinhos cruéis do sudoeste do Estado.

E tomou gosto por ensinar aos netos, assim como ensinou aos filhos, que só se tem para dividir, e que não faz sentido ter o que não se pode oferecer: o teto, a mesa, o amor e a chuteira, a quem se quer bem e a quem nunca se viu antes.

Os meninos não ficaram tanto tempo assim com essa logística complicada: alguns meses depois um deles conseguiu comprar outro par e ambos ficaram devidamente aparelhados para as partidas posteriores, mas aqueles meses serão sempre lembrados até pelo próprio campinho como a época em que se um tinha, tinham dois.

 

 

 

Publicado na edição 1119 – 28/06/2018

A chuteira esquerda

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