Travessa 21

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São aproximadamente duas horas da tarde quando eu entro na Travessa 21 – uma rua tão abandonada que nem sequer recebeu outro nome. As demais travessas já foram todas batizadas, mas a de número 21 ainda mantém o nome provisório.

Os moradores da 21 são praticamente tão abandonados quanto a rua: para poder acessar esse local específico precisei ser autorizado pelo traficante que detinha o poder na região: nessa travessa é feito o estoque das drogas distribuídas na cidade. Fui apresentado a ele por meu antecessor naquele trabalho.

O ano é 2004 e eu estou usando o uniforme típico azul e amarelo dos Correios. Quando viro à direita, acessando a Travessa, vejo, no fim da rua, um homem segurando uma criança no colo. É uma menina de uns dois anos, sentada sobre um de seus braços. Na outra mão do homem, um copo de cerveja quente – é verão, e na Travessa 21 o verão é realmente intenso. No chão, a garrafa, também quente.

O homem cambaleia, magicamente equilibrando criança e copo da forma que consegue. É justamente por ele que procuro: há uma encomenda para o senhor, preciso de sua assinatura. Ele me olha, e também olha para o copo e para a menina, suas mãos estão ocupadas. Pergunta se eu posso assinar por ele, prometendo de antemão que nunca ninguém saberá desse pequeno crime. Explico que não posso, lamentando.

Pergunto se a criança é sua filha e ele confirma. A menina olha para mim, curiosa. Quem é essa pessoa que está conversando com meu pai? Brinco com ela, sorrindo, e digo ao pai que ela é linda. O homem demonstra surpresa: “é?”. E seus olhos marejam, como percebendo uma novidade ou apenas lembrando de algo em que já acreditou – a beleza da filha. Faz tempo que ninguém diz que sua filha é linda, penso.

A menina está suja e usando apenas uma fralda e um chinelo, e realmente é linda. Seu olhar de curiosidade é cativante, como geralmente é esse olhar – mesmo em adultos. Ela olha para o pai, para mim, para a cerveja, para os objetos que estou segurando: tudo é motivo de sua atenção. O pai cambaleia e isso a diverte, parece brincadeira.

Tenho pressa, porque há outras ruas, encomendas, contas a pagar, porque o verão é intenso e porque quero terminar logo o dia, por isso seguro caneta e folha de assinaturas demonstrando ao pai que ele precisa tomar uma atitude logo.

Nesse momento percebo que ele está com medo. Caso ele escolha soltar a filha, o que vai pensar essa pessoa que acabou de elogiar minha cria? Que tipo de pai eu sou que prefere segurar um copo de cerveja à própria filha? Por outro lado, o chão é irregular, e uma criança que já sabe andar não terá problemas com isso, ela está usando chinelo, porém um copo, é seu último copo daquela cerveja quente, vai que o copo vira, a garrafa está no fim, o dinheiro está no fim, o mês está no fim.

Ele assina o papel que entrego a ele, depois de tomada a decisão. Está agora chorando enquanto toma mais um gole. A criança corre, feliz, brincando com as pedras do chão.

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