O ano do centenário

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Há centenas, talvez milhares de Araucárias em Araucária. Não as árvores: as cidades. As tantas e tantas cidades que existem dentro de um só município. Uma para cada habitante, talvez. Há uma muito receptiva às famílias de origem polonesa. Uma muito pouco receptiva a qualquer descendência não-branca. Uma moderna, uma retrógrada.

Uma dessas cidades foi descrita muito bem em um disco gravado em 1990, “o ano do centenário”. Lembro-me do disco que comemorava os 100 anos de emancipação política, em sua capa as pontes de ferro, as festivas e famosas pontes de ferro de onde, anos depois, um amigo meu, araucariense de nascimento, se jogou em tentativa de suicídio depois de um episódio de racismo.

A festa do centenário foi linda, vários artistas de sucesso se apresentando no palco montado no Parque Cachoeira, em frente à Aldeia da Solidariedade, local em que até hoje existem as lindas casinhas dos índios, primeiros habitantes da cidade. Hoje não tem mais nenhum índio aqui, não que eu tenha visto, pelo menos. Na Aldeia, uma vizinha minha foi estuprada em 1997.

Lembro bem das apresentações teatrais no dia da Festa. Todo mundo estava tão feliz. Gostei tanto que logo que cresci mais um pouco decidi fazer teatro. Fiquei lá alguns anos e formei amizade com muita gente bacana, excelentes profissionais, artistas brilhantes. Um deles, professor queridíssimo e competente, além de poeta e dançarino, alguns anos depois foi assassinado a facadas porque era gay.

“Me desculpe, meu irmão, você não está sendo sensato / quem agride a natureza comete um assassinato / se para bem viver você é obrigado a matar / me desculpe, meu irmão / isso assim não vai ficar”, essa era a letra de uma das canções do disco dos 100 anos. Bastante coerente, isso qualquer cidadão aqui sabe, é só entrar na cidade que o pulmão se enche de um ar puro característico desse lugar abençoado.

Esse lugar que recebe de braços abertos as culturas diferentes, como os ciganos que costumavam acampar em frente ao colégio da Archelau até que a praça foi transformada em parquinho. Esse solo sobre o qual cresce o milho, o trigo e o asfalto. Um lugar em que o sobrenome vale mais que o nome e, dependendo de qual seja ele, grande é a influência de seu detentor.

Eu, que de influente não tenho nada, sou apenas fluente em vagar pelas ruas e esquinas dessa cidade. Nesse vagar às vezes me pergunto o que foi que mudou por aqui desde 1990 até hoje. Se fosse mais velho, talvez me perguntasse o que mudou de 1890 até hoje. Se eu fosse negro, mulher ou gay, talvez não perguntasse demais. Se fosse índio eu não perguntaria nada.

Feliz aniversário, Araucária.

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