O velório

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Ela desce do carro quase desmaiando, inconsolável pela perda do grande amigo. As pessoas na entrada da capela olham para ela imaginando que devia ser muito próxima do morto, pela cena. Ela precisa ser amparada para entrar no local onde está o caixão, quase não consegue andar, chorando ainda meio dopada pela notícia e pela tristeza.

Seu desespero é enorme, em sua cabeça os pensamentos típicos de quando se perde alguém querido: como a vida é injusta, como a vida é curta, como a vida é triste. Do carro até o caixão ela nem olha para as pessoas que estão por ali. Deveria ter olhado. Talvez ela percebesse que não havia sequer uma pessoa conhecida naquele grupo, o que serviria como um alerta para o que vai acontecer.

Quando ela chega em frente ao caixão, é outra pessoa que está sendo velada. Sim. Outra pessoa. Mais do que isso: é um vizinho seu. Que morreu de tiro. Porque era traficante. Ela está reconhecendo o morto e ponderando como deve reagir agora, o primeiro pensamento é sair de fininho mas não tem como deixar o local de forma discreta porque não foi assim que entrou.

A mistura de erro e coincidência faz com que uma vontade de gargalhar vá tomando forma no fundo do seu ser quando ela deixa escapar: “esse aqui também não devia ter morrido”. Não lembra sequer do nome do novo morto. Lembra que soube de algumas prisões dele por meio de vizinhos, sabia que ele andava metido com a criminalidade, quando crianças brincavam juntos, mas já fazia anos que não tinham contato.

Põe a mão na frente da boca, fingindo choro pra esconder o riso, o povo em volta olhando, a maioria dos presentes só está ali por consideração à família, aparentemente o sujeito não era lá muito boa pessoa, o velório meio vazio, ela olha tímida ao redor, no semblante das pessoas aquela curiosidade, quem será essa menina que gostava tanto dele?

Ela fica cinco protocolares minutos olhando para o traficante morto e pensando se existe uma saída digna para uma presepada dessas e se culpando internamente: “por que eu não olhei antes em qual capela ele seria velado? Custava ter visto isso antes? Eu preciso mesmo fazer essas coisas… já não basta ter pedido Morena Tropicana para o Morais Moreira?”.

Decide que está na hora de sair, afinal a vida é assim mesmo, morrer faz parte, hehe, é a única certeza que temos, não é mesmo? É isso, pessoal, abração aí, aquele olhar de “o que se pode fazer?”, acenando com o queixo e com a sobrancelha para os poucos presentes. Está agora se dirigindo à porta da capela num esforço tremendo para não rir, nada pior que rir num velório, quando a mãe do morto aparece na porta, entrando.

“Oh, querida, você veio se despedir dele! Não sabia que vocês ainda se falavam, depois que ele começou a mexer com aquelas coisas erradas dele, você sempre foi moça tão certa…”.

No velório certo ela ria.

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