Sobre como descobri que os bebês não são entregues pela cegonha

Facebook
LinkedIn
WhatsApp
Telegram
Email

Na minha rua existia uma hierarquia entre as crianças. Os mais velhos e maiores eram os que controlavam as brincadeiras. O futebol era disputado num terreno baldio cuja demarcação era feita com uma vareta — riscávamos o chão de terra preta até que ficasse uma marca quase impassível de questionamento sobre os limites do campo — de forma tão rudimentar que havia no ar uma certeza permanente de que um dia um fiscal da FIFA apareceria por lá e proibiria novas disputas em nosso estádio.
Eu não estava entre os maiores, o que me fazia ter duas opções para brincar: aceitar ficar no time mais fraco (e ser sempre goleado) ou brincar sozinho e fingir que estava declarando minha independência do grupo.
Nesse dia eu estava rebelde. Um menino novo tinha chegado no grupo e, olhando de longe, eu previ: “esse piá deve ter uns onze anos”. Onze anos significava que um forasteiro, desconhecido, estava chegando agora e já ia ser o novo mandachuvas do grupo, por ser mais velho e maior que todos. Eu não podia aceitar isso. Mas também não tinha como fazer nada a respeito.
Decidi ir embora e pegar minha bicicleta. Um amigo resolveu me acompanhar. Não éramos mais escravos da máquina de dinheiro que o futebol havia se tornado, com negociatas por debaixo dos panos, resultados arranjados, patrocinadores corruptos. Éramos desbravadores, Colombos procurando novas terras, novas civilizações, fósseis, maravilhas da natureza ainda desconhecidas da humanidade, tribos indígenas nunca vistas por homens brancos. Éramos um pouco exagerados também.
Dávamos então voltas na quadra de bicicleta e, quando passávamos em frente ao campinho onde a partida seguia sem nossa participação, não era sem algum recalque que gritávamos mais alto nossa felicidade por termos escolhido outra brincadeira, talvez secretamente desejando que houvesse outras dissidências entre os jogadores e que, por falta de quórum, o jogo não pudesse prosseguir, e que talvez o grandão de onze anos tropeçasse e caísse de cabeça numa pedra e morresse, que tragédia terrível seria, mas acontece, vida que segue, o esporte não poderia parar.
Porém o ciclismo cansa: pouco tempo depois estávamos sentados conversando. Foi quando meu amigo me disse que havia descoberto como os bebês eram feitos. Eu só conhecia três teorias naquela época: a cegonha, o repolho e o correio. Somente anos depois eu fui saber que a explicação que ele trazia consigo era a que batia com aquela universalmente aceita.
Por isso, é óbvio que na hora não acreditei. Tanto que abandonei a conversa, sugerindo que nossa rebeldia já deveria ter surtido efeito e que deveríamos voltar para o campinho. Voltamos a tempo de ver o Onze-Anos marcar um belo gol de cabeça, fato que foi objeto de disputa verbal e quase física entre as duas equipes, já que a trave era marcada por tijolos, o que permitia uma interpretação dúbia sobre sua altura. No fim o gol foi validado e Onze-Anos, mais vivo do que nunca, para secreto desprazer de alguns, consolidou seu lugar no topo na nova hierarquia da rua.
Mais de 25 anos se passaram desde aquela tarde. A FIFA nunca apareceu no campinho. Quem apareceu foi o feliz comprador de um terreno no jardim Santa Regina, que construiu sua casa sobre a terra batida onde tantos gols haviam sido feitos e comemorados.
Hoje, não tendo nunca visto uma cegonha na vida, olho com certo receio para o repolho no mercado, para o carteiro que segura uma bolsa muito grande e para qualquer amor que se comece a desenhar, temendo que qualquer uma dessas igualmente convincentes teorias me traga uma pessoa – que um dia terá ou temerá Onze-Anos.

Compartilhar
PUBLICIDADE