Sobre o gato, sobre a gente

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Entrei em casa e meu gato me olhou com um ar suspeito. Aqueles que nunca conviveram com gatos não acreditam, mas juro que é verdade, e não costumo jurar em vão, exceto em caso de extrema necessidade, os bichos têm, sim, expressões, tão claras quanto as humanas, às vezes até mais claras, eu conheci uma senhora que era tão expressiva na alegria quanto na tristeza, e em ambas as emoções, e em tantas outras quantas mais pudessem exis­tir naquele coração sofrido, se é que sofrido era seu coração, imagino que era, nada transparecia em seu rosto.

Enfim, o fato é que meu gato me olhou de forma suspeita. Em geral quando entro em casa ele segue uma rotina já bem definida, primeiro se enrolando nas minhas pernas em uma tentativa de me fazer cair e bater com a cabeça na quina da mesa, fa­lecendo, mas depois, ao ver que demonstro perícia em permane­cer em pé, vai até o local onde fica sua comida e, resignado, pede que eu coloque mais ração em um pote já cheio. Nesse dia ele me olhou de canto, simulando que minha chegada não era nada além de trivial, e saiu de casa, andando mansamente.

Essa atitude naturalmente me causou espanto, por um momento cri que tinha deixado de significar algo na vida dele, e nós que envelhecemos sabemos que se grande é o medo de dei­xar de significar algo na vida de pessoas, tanto mais na vida de bichos, porque grande sabedoria reside na alegada irracionalidade deles. Mas no instante posterior já entendi do que se tratava: sobre o sofá, dormindo tranquilamente, uma gata que andou circulando pelo meu terreno nos meses anteriores.

Eu já tinha notado que a ami­zade dos dois andava crescendo e se tornando algo maior. De uma gata que eventualmente aparecia por lá e fugia ao primeiro sinal de vida ela passou a ser uma gata que ficava no terreno e só saía se tivesse um sinal claro de que não era bem-vinda, e agora ela é uma gata que está dormindo no meu sofá, e quando entro em casa ela abre os olhos, preguiçosa, e boceja, ela tem a pachorra de bocejar, me olhando, para só então levantar e se espreguiçar, na ponta dos pés, aqueles pés lindos de gato, e sair de casa, não sem antes se esfregar na minha perna, como um felino agradecimento pelo empréstimo do sofá.

Meu gato, meu castrado gato, tem uma namorada. Eu não imaginava que após a cirurgia em que foram retiradas dele as partes relacionadas ao amor ele continuaria capaz de amar, mas aparentemente é possível, afinal o amor não está necessariamente relacionado com a possibilidade de ter prole, muito pelo contrário, talvez a incapacidade de ter prole, e consequentemente não gerar novos proletários, transforme o amor comum em um amor ainda mais puro, caso houvesse essa gradação nas formas de amar. O fato é que é um gato que, embora castrado, ama.

E há quem se julgue capaz de determinar que espécie de amor é natural.

Publicado na edição 1143 – 13/12/18

Sobre o gato, sobre a gente

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