Tina e Jair

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“Jair. Vou embora porque não aguento mais você só me bate e fica dando chingos. Eu te amo. Tina.”

Depois de tantos anos, não consegui esquecer o recado que Tina deixou para Jair quando o deixou. As melhores poesias são as frases escritas e ditas sem sequer ter essa intenção poética. Isso foi escrito na capa de um disco do Nazareth. Meu amigo emprestou o disco de outro amigo que ganhou de outro amigo… De amigo em amigo, acabei tendo o disco em mãos. Não sou perito mas arrisco dizer que a escrita tinha pelo menos uns dez anos.

Tina amava Jair. Tina já tinha tentado falar com Jair sobre as agressões. Tina pediu conselhos a sua mãe, à melhor amiga e a colegas de trabalho. Ela não queria de verdade ouvir a resposta, mas o veredito de todos foi o mesmo: Jair era incorrigível. E também disseram a Tina que “mulher apanha uma vez porque o marido quer, mas na segunda é porque a mulher gosta”.

Tina ainda resistiu mais algumas vezes. Se fossem só os tapas talvez ela ficasse. Mas ela preparava doces para Jair. E Jair chegava bêbado e batia nela. Mas Jair fazia pior. Jair dava “chingos” nela. Isso, sim, era inaceitável.

Então Tina, com toda a dor que sentia, humilhada por Jair — e ainda assim amando Jair — tomou a decisão. Iria mesmo embora. Não brigaria pela casa, não havia filhos. Voltaria para a casa de sua mãe, que a criou sem pai. Mas Tina não era mulher de ir embora sem deixar claro o motivo.

Tina olhava os discos e lembrava de tudo o que havia passado com Jair. Na primeira vez que se encontraram, na discoteca, e foram apresentados por uma amiga em comum (que depois Tina descobriu ser ex-namorada dele). E Tina lembrou que tocava “Love Hurts” no momento em que dançaram.

Com um ano de namoro, Tina comprou o disco duplo do Nazareth, importado, para presentear Jair. Dançaram juntos inúmeras vezes e Tina às vezes chorava quando lembrava de como no início tudo era bom.

Lentamente ela procurou uma caneta. Demorou a encontrar, mas havia uma Bic azul no fundo de uma gaveta que há muito tempo estava fechada, meio enrolada em um terço de madrepérola. Teve que riscar várias vezes o canto da capa para que a caneta soltasse tinta. E funcionou.

Então Tina foi direta. Não queria subentendidos. Não queria que Jair ousasse fingir que não sabia do que ela falava. Com todas as palavras, mas só as necessárias: “Jair. Vou embora porque não aguento mais você só me bate e fica dando chingos”. Jair saberia do que ela estava falando.

Mas faltava alguma coisa. Jair era dissimulado. Ia sair dizendo pra todo mundo que Tina tinha ido embora porque “arranjou outro macho”. Que ele sempre soube e estava certo quando gritava duvidando da fidelidade de Tina.
Então Tina aplicou o golpe final: “Eu te amo”.

Tudo o que qualquer pessoa poderia dizer em situação semelhante foi dito por Tina. Tina foi sábia como poucos. Tina amava Jair. Mas amava mais a si mesma.

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