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O lado árabe da vida

Transatlântico Giulio Cesare em foto de 1970 de um antigo cartão postal. Nesse navio os jovens Hassan, de 11 anos, e seu irmão mais velho Ali, de 13 anos, vieram para o Brasil reencontrar a família.
Transatlântico Giulio Cesare em foto de 1970 de um antigo cartão postal. Nesse navio os jovens Hassan, de 11 anos, e seu irmão mais velho Ali, de 13 anos, vieram para o Brasil reencontrar a família.

Almeida, açúcar, alface, alfaiate, alfândega, algarismo, algodão, almanaque e alvará são apenas alguns exemplos de palavras da língua portuguesa começadas com A e AL que têm origem árabe. Lógico, temos também muitas outras palavras que se iniciam com outras letras do alfabeto como leilão, oxalá, tâmara, tarifa e xarope, com a mesma origem.

Para além das palavras, muito antes do primeiro árabe pisar em solo araucariense, elementos culturais tão diversos como costumes, conhecimentos matemáticos, culinária e arquitetura, já faziam parte do cotidiano dos primeiros moradores dessas paragens. Para ficar em pouquíssimos exemplos podemos citar o consumo de café, açúcar, laranja, arroz, cravo e canela; o uso dos algarismos indo-arábicos; o jogo de xadrez e a prática da caligrafia.

Foi a presença dos mouros e árabes na Península Ibérica entre os séculos VIII e XV que derramou sobre a Europa medieval todas essas dádivas. Espanha e Portugal se formaram durante as guerras de reconquista desses territórios e ainda hoje trazem em seu DNA a herança árabe. Por isso quando os primeiros colonizadores portugueses aqui se estabeleceram traziam consigo todo esse legado cultural.

Em Araucária as primeiras famílias árabes se estabeleceram na década de 1910. Muitas saíram da sua terra natal em decorrência do domínio que o Império Turco Otomano exercia sobre o Oriente Médio até 1918 ou por conta da confusão causada pelo fim desse mesmo Império, fazendo daquela região palco de infindáveis conflitos. Eram procedentes da Síria e do Líbano, alguns já tinham tentado ganhar a vida em outras cidades, até que viram aqui melhor sorte.

Enfrentando uma longa viagem para terras desconhecidas, contando com uma pequena, porém dedicada, rede de apoio familiar e fraternal de conterrâneos, muitas vezes sonhando em juntar dinheiro e voltar à terra natal. Quis o destino que fincassem alicerces em nossa cidade. Os detalhes da viagem não saem da mente de quem vivenciou a grande travessia, como podemos conferir na entrevista do sr. Hassan Hussein Dehaini, concedida ao pesquisador Sebastião Pillato, em 2002:

Nasci em Beyruth, a capital do Líbano, no dia 21 de março 1949. Meu pai se chama Hussein Ali Dehaini (in memorian) e minha mãe Adle Dehaini, ambos também nasceram em Beyruth. Meu pai veio para o Brasil, em 1950, e minha mãe chegou 5 anos depois (1955).

Meu irmão e eu ficamos em nosso país de origem. Quando meu pai deixou o Líbano, tinha meu irmão mais velho chamado Ali e eu, dez anos depois, quando cheguei ao Brasil em 1961, tinha nascido em São Paulo, meu irmão Hissan, já com 6 anos, e minha irmã Uhayla com 6 meses, nascida em Belo Horizonte.

Saímos do Líbano, passamos pelo Egito e na Itália embarcamos no navio de nome Júlio Cezar, que era uma embarcação enorme, até hoje é uma embarcação enorme, eu tinha 11 anos e meu irmão tinha 13. Levamos 19 dias para chegar ao Porto de Santos. Meu pai que havia enviado as passagens nos aguardava. […] Tudo era novidade. Nós éramos crianças, […] e iríamos conhecer outros países. Por ser um navio italiano, […]só tinha massa de macarrão para comer (ALMEIDA, p.135-6 ).

Os casamentos com filhos e filhas de outros grupos étnicos só acelerou a rápida integração à vida do município. Com a construção da refinaria, novas famílias de ascendência árabe se estabeleceram no município, como a já citada família Dehaini, que se notabilizou nos ramos de transporte, hoteleiro, varejista e até mesmo na vida política do município.

Chamados de “turcos”, algumas vezes sentiam-se duplamente ofendidos, por confundi-los com seus antigos dominadores e pela falta de conhecimento dos seus interlocutores.

Nas palavras do sr. Hassan:

[…] durante a época da primeira imigração em 1918 a Turquia dominava o Líbano, a Síria, o Egito e a Jordânia, consequentemente os imigrantes vinham com passaporte turco. […].  Então é por isso que começaram a nos chamar de turco. Mas na verdade, nós não somos turcos, somos libaneses, falamos idioma árabe. A Turquia, não tem nada a ver com o Líbano, […] lá se fala o turco, hoje isto já está claro na cultura do povo (HASSAN, p. 136 ).

O empreendedorismo, a determinação e o sentimento de conquista do pertencimento a essa terra marcam a relação entre Araucária, os árabes e seus descendentes.

Foto: Divulgação. Transatlântico Giulio Cesare em foto de 1970 de um antigo cartão postal. Nesse navio os jovens Hassan, de 11 anos, e seu irmão mais velho Ali, de 13 anos, vieram para o Brasil reencontrar a família.

ALMEIDA, Rafael de Jesus Andrade de. Araucária, nossa história: povoamento e trabalho. 3ª edição. Araucária: Secretaria Municipal de Educação 2022.

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