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Vítima sobrevive ao relacionamento tóxico narcisista: “Cada dia é uma luta!”
Foto: Divulgação

Segundo a Lei Maria da Penha, a violência doméstica é classificada em 5 tipos: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. No entanto, o perfil dos agressores ainda é pouco estudado, porém sabe-se que eles seguem um padrão contínuo de controle coercitivo, envolvendo várias formas de intimidação e abuso psicológico e físico. Dentre os vários tipos de violência, se esconde um agressor muitas vezes difícil de ser identificado: o narcisista.

Difícil porque a vítima demora a perceber que está vivendo ao lado de uma pessoa com características de transtorno de personalidade narcisista. A araucariense A.L. se viu diante dessa situação, ela viveu por cerca de um ano e meio com um narcisista, demorou para entender o que estava acontecendo por não saber sobre as características desse transtorno de personalidade, e o final foi o pior possível, porque ela saiu devastada deste relacionamento.
“Quero expor a minha história, porque nesse percurso conheci muitas pessoas que passaram ou estão enfrentando esse caos. Hoje, devido às redes sociais, muitos especialistas debatem o assunto e isso me ajudou a ter a certeza de que adoeci devido a um relacionamento abusivo”, afirma.

A história de A.L. começa quando ela conhece um homem ‘maravilhoso’, que em pouco tempo a conquista e a faz sentir-se a pessoa mais importante do mundo, a mais bela e a mais maravilhosa. “Ele dizia: ‘encontrei minha alma gêmea, a mulher da minha vida’, e em um curto espaço de tempo veio a fase da idealização, onde o narcisista cria uma sensação de conexão instantânea com você, fazendo com que se sinta único e maravilhoso. Esse ciclo é chamado também de ‘love bombing’ (muitos elogios, presentes, atenção extrema e cuidado com seu bem estar). Ele mandava até a localização de onde estava o tempo todo, como forma de eu me sentir especial. Realmente me apaixonei por um personagem!”, lamenta.

A fase seguinte foi a da desvalorização, onde o narcisista passou a fazer com que A.L. sentisse culpa pela relação estar esfriando. Os elogios já não eram tão frequentes e a palavra amor foi substituída por um simples apelido. “As ausências se tornaram frequentes, eu não sabia mais onde ele estava e muito menos com quem, ela já não me convidava para sair, e quando o fazia era nas madrugadas, provavelmente quando sentia alguma falta. Quando eu perguntava o que tinha acontecido com aquele homem que me apaixonei, ele dizia: ‘está por aí…quem sabe depois que você se curar dos seus traumas, ele volte’. Então, toda a culpa era jogada nas minhas costas”, relembra.

Nessa fase, A.L. passa a sentir-se culpada e tenta entender o que havia feito de errado. Ela inicia o atendimento psiquiátrico, com terapias e uso de medicamentos. “Parecia que eu ia enlouquecer, era uma dor tão forte dentro de mim que por vezes pensei em desistir de tudo. Perdi minha identidade e meu amor próprio. Comecei a estudar sobre as características desse transtorno e fui compreendendo que, infelizmente, havia me apaixonado por um narcisista, uma pessoa que não sente empatia – meu sofrimento não fazia a menor diferença para ele. Nos momentos de silêncio, que durava semanas sem contato algum, já havia outras no meu lugar, mesmo ele negando e ficando indignado quando eu o questionava sobre as traições. Aos poucos, fui descobrindo mensagens que ele mandava para pessoas conhecidas minhas, que sabiam da situação emocional que eu me encontrava. Elas evitavam me contar, mas alertavam minha família”.

O ‘descarte’ foi a fase mais cruel que A.L. enfrentou. “O nome condiz realmente com o que aconteceu, fui colocada dentro de um saco de lixo e descartada sem valor algum. Ali ele já havia encontrado outra vítima, e mesmo eu dando muitas oportunidades para ele se explicar, mesmo não tendo encerrado definitivamente a relação comigo, me deparei com ele nas redes sociais apresentando a nova namorada e se declarando. Hoje me encontro num processo de cura, aprendendo a resgatar meu amor próprio e entender que não tive culpa, mas fui uma vítima”, revela.

A.L. diz que escreveu esse relato para que as pessoas se atentem aos seus relacionamentos, percebam os sinais, pois os narcisistas não tem ‘cara’, eles têm atitudes. “Geralmente são pessoas muito legais, possuem a necessidade de agradar a todos, acham que tem muitos amigos e tendem a ter uma mente perturbada. Esse transtorno de personalidade não tem cura, caso a pessoa aceite, pode ser melhorado através de terapias e acompanhamento intenso”, explica.

A.L. disse que está resgatando seu valor através da fé, da sua família maravilhosa e dos amigos que a fazem acreditar que essa história não a define e que a fez mais forte. “Estou me tornando uma estudiosa no assunto para poder auxiliar as pessoas que precisam de apoio e esclarecimento”, declara.

Reconhecer os sinais

Para a conselheira terapeuta em codependência familiar e emocional, Michelle Nogueira, a violência doméstica é um problema complexo e multifacetado, que se manifesta de diversas formas. Não se limita a ferimentos visíveis, mas abrange uma gama de comportamentos que visam controlar, dominar e humilhar a vítima.

“Falando especificamente das mulheres casadas com homens que possuem o transtorno de personalidade narcisista (TPN), elas frequentemente vivenciam um tipo de relação que pode ser caracterizada como uma forma de abuso psicológico, envolvendo a manipulação, desvalorização, controle, entre outros. Embora o abuso psicológico seja o mais marcante, existe outro tipo de abuso pouco citado, porém muito recorrente. Estamos falando da codependência, onde a sobrevivente busca constantemente o comportamento de aprovação e validação do narcisista. Na Síndrome de Estocolmo (que ocorre em casos mais extremos), o parceiro desenvolve um vínculo emocional tão profundo que faz a vítima se manter ao lado mesmo em situações de abuso. Importante ressaltar que o narcisismo não é exclusivo de um gênero. Embora a narrativa cultural muitas vezes associe o narcisismo a homens, mulheres também podem apresentar esse transtorno de personalidade”, elucida a terapeuta.

Segundo ela, a expectativa social de que os homens sejam fortes e independentes, pode dificultar que admitam estar sendo vítimas. O estigma social é também fator para que homens se calem, visto que historicamente a violência doméstica sempre está associada a homens agressores. Isso leva os homens a se sentirem envergonhados ou culpados por buscar ajuda.

“Reconhecer os sinais de um relacionamento com um parceiro narcisista pode ser o primeiro passo para buscar ajuda e iniciar o processo de cura da dependência emocional. Precisamos nos atentar aos sinais, que podem vir sutilmente, deixando os abusos com padrões ‘normais’”, afirma.

Os sinais comuns de um comportamento narcisista são a manipulação da realidade e a desvalorização da auto estima, onde a parceira é constantemente minada através de críticas. Na falta de empatia, o narcisista tem dificuldades de se colocar no lugar da vítima. Há ainda o isolamento total que priva a parceira do social, familiar e muitas vezes o financeiro. “A culpabilização ocorre quando o narcisista responsabiliza a vítima por seus erros e comportamentos. Já a grandiosidade aparece porque ele tem a visão inflada de si mesmo, e a inveja, porque são extremamente invejosos de suas parceiras. O TNP é um tema complexo e muitas vezes subestimado na sociedade. Pouco se fala porque a vítima quando consegue pedir ajuda, frequentemente já se tornou um caso clínico psiquiátrico. Nas unidades de saúde pública, por exemplo, nunca se ouve falar da terapia voltada para a codependência familiar e emocional. Infelizmente quando a vítima busca ajuda, já está adoecida e precisa do uso de medicamentos”, alerta.

A terapeuta lembra que a terapia pode ser um espaço seguro para que as pessoas com o transtorno e suas vítimas possam explorar experiências, desenvolver estratégias de enfrentamento e construir relacionamentos mais saudáveis. “Além disso, a educação da sociedade sobre TNP é essencial, necessária para reduzir o estigma e promover a busca por tratamento. Um fator que ainda intriga os pesquisadores, profissionais e estudiosos, é sobre o desenvolvimento desse transtorno, visto que eles podem ser tanto biológicos (predisposição genética), quanto ambientais (forma como somos criados). Eventos traumáticos na infância, como abusos ou negligência, também aumentam o risco de desenvolver o TPN”, diz Michele.

Difícil romper

De acordo com ela, muitas vezes nos perguntamos porque essas mulheres permanecem em relacionamentos abusivos, e a resposta é complexa, pois envolve uma série de fatores psicológicos e emocionais. Não é uma escolha fácil, a vítima muitas vezes se encontra em um estado de sofrimento profundo. A fase da idealização cria nela uma forte dependência emocional, tornando difícil romper laços. Outro fator é sua autoestima estar comprometida, uma vez que o narcisista ataca frequentemente esta área da vítima, fazendo-a duvidar de si mesma. O medo do desconhecido e da represália pode interferir nesse afastamento, a incerteza do futuro, a solidão, tudo isso é assustador, levando a vítima a se apegar ao que conhece, mesmo sendo doloroso”, explana.

A vítima pode precisar de ajuda profissional (terapia), onde terá acolhimento, estratégias de enfrentamento, planejamento para o futuro e empoderamento. “Mesmo após o término de um relacionamento marcado pela violência doméstica, as vítimas podem carregar sequelas profundas e duradouras. As consequências podem ser diversas e abranger diferentes áreas da vida. Na saúde mental, podem desencadear transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), baixa autoestima, ansiedade, pânico, distúrbios do sono e alimentares. Na saúde física podem ocorrer doenças crônicas, como dores, doenças cardiovasculares e gastrointestinais. Ela pode ter problemas sexuais devido a traumas frequentes e abuso. Em suas relações interpessoais, pode causar dificuldade em confiar em outras pessoas, e medo de novas relações. As vítimas sofrem com a dificuldade de trabalhar e automaticamente vem os problemas financeiros, impossibilitando a independência da vítima. É fundamental oferecer apoio e compreensão às vítimas, sem julgamentos. Lembrando que a recuperação é um processo gradual, individual e que cada pessoa tem seu próprio tempo. Mulheres que precisam de ajuda poderão entrar em contato comigo pelo fone (11) 95556-3750”.

Edição n.º 1445.

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