“Nos humanizamos contando lendas”, afirma o professor de História Rafael de Jesus Andrade de Almeida. Isso porque as lendas sobre fantasmas, lobisomens, boitatás, dentre tantos outros seres fantásticos, prosperam entre nós por cumprirem funções primordiais à vida em sociedade. “Em primeiro lugar, porque grande parte das pessoas experimenta prazer em sentir medo, nesse sentido, não se trata de um mero exercício de fuga ou devaneio. Trata-se sim, de uma função essencial à aprendizagem humana, despertando nossa atenção para o desconhecido, o misterioso, para algo que se acredita estar além do mundo material. Por isso nos deleitamos tanto em contar e ouvir essas lendas, transmitindo-as de geração em geração”, explana o educador.
Para ele, esse mundo desconhecido pode começar a ser explicado por meio da imaginação. Acontece que todos os seres imaginados, lendas e estórias, partem de elementos concretos da realidade. “Tomamos como exemplo os lobisomens, parte humanos, parte lobos, dois seres vivos reais. Portanto, todas essas lendas têm alguma ancoragem na realidade, têm algo de profundo sobre nós mesmos, que precisa ser desvelada para nos conhecermos melhor”, ilustra.
Rafael cita ainda as lendas sobre o Cemitério Palhanos, aqui em Araucária, que em 1969 foram amplamente divulgadas pela imprensa do Paraná, com seus fantasmas, enforcados e sangue fresco saindo dos túmulos. “Uma análise mais profunda nos remete a uma história que tem mais de dois séculos, sobre coronéis, política local e relações de dependência por parte dos caboclos”, afirma.
Ainda segundo o professor, outro aspecto importante é a função de alerta sobre a ordem natural e moral que são esperadas do nosso mundo. Nesse sentido, os seres monstruosos seriam resultado de algum tipo de castigo divino, daí a sua degeneração biológica. “Como nos ensinou o professor Romão Wachowicz, no livro Saga de Araucária: “[…] para conservar a moralidade, não só entre os jovens, mas também entre os adultos, inventaram lendas apropriadas sobre boitatás e lobisomens. O personagem folclórico boitatá é uma mulher pecadora, que faz penitência pelos pecados sexuais cometidos. […] Lobisomem é um homem, cúmplice do pecado com o boitatá (p. 29)”, cita.
Rafael ainda ressalta que a própria Igreja e o próprio Estado se valeram e até certo ponto ainda se valem dessas lendas para incutir a obediência aos seus ordenamentos, muitas vezes amedrontando populações inteiras. “É o caso das descrições difundidas sobre as espiritualidades de matrizes africanas e indígenas, não raro de forma depreciativa, numa tentativa de normatização apenas do ocidente, do europeu, relegando todo os demais à superstição, à magia e à irracionalidade. As lendas e suas relações com o medo e o prazer, a imaginação e a aprendizagem, o alerta e o castigo, são universais e resistem à modernidade, industrialização e urbanização por fazerem parte da nossa humanização. Nos humanizamos contando lendas!”, arremata.
Diz a lenda
O professor de Artes Jester Furtado também reforça que uma cidade que não conhece e não preserva suas lendas, mata importante parte da sua história. De acordo com ele, falar de lendas é fazer conexões com gerações passadas, visitar contextos socioculturais de povos que vieram antes de nós. “É como sentar em uma roda de conversa em torno de uma fogueira e deleitar-se com as histórias de nossos anciãos, é reconhecer o imaginário popular, a força da oralidade e também as raízes do momento presente”, exemplifica.
Jester acredita que por serem um importante elemento cultural, as lendas fazem parte da construção de um povo enquanto coletividade, então ignorá-las significa ignorar aquilo que também constitui a memória e a identidade de uma cidade. “A mistura entre fatos reais, a imaginação e as crendices populares costumam gerar boas histórias de suspense, terror e encantamento: imóveis ocupados por aparições fantasmagóricas, personagens reais eternizados nas histórias contadas e recontadas por diferentes gerações, a convicção plena de alguém que jura conhecer alguém que já viu, ouviu e até já se arrepiou com fenômenos anormais, barulhos estranhos, passos em cômodos vazios, portas que batem, luzes que acendem, pessoas que surgem e somem misteriosamente, fenômenos ditos sobrenaturais que enriquecem e aguçam a imaginação dos populares”, diz.
O professor acrescenta que personagens míticos renascem a cada vez que sua história é contada, se tornam guardiões invisíveis que podem zelar ou assombrar o ambiente, tudo de acordo com os relatos de quem presenciou, ouviu falar ou diz conhecer uma testemunha ocular. “Diz a lenda que Araucária tem muitos mistérios para desvendar. Que nossas lendas repousem tranquilas e salvaguardadas nos anais da cidade e encontrem morada no imaginário da nossa população”, declara o professor.
Lendas ajudam a preservar a memória cultural de Araucária
Fantasma da Danceteria Studio Flash
A danceteria Studio Flash foi cenário de muitas lendas, onde existiram simpáticos fantasmas, criados a partir do conto do “Escravo Sobrenatural” Yobanhô, que nasceu na África e tinha características sobrenaturais. Um certo dia, a tribo dele entrou em conflito com uma tribo rival, seu povo perdeu e seus inimigos venderam os rivais como escravos. Yobanhô foi parar na Bahia e vendido para um conde português, casado com uma inglesa chamada Mary. Era muito ágil e rápido, e a inglesa o apelidou de Flash. O conde faleceu e Mary vendeu seus bens e todos os seus escravos. Yobanhô foi comprado por um proprietário de terras do Sul do país, que o levou para trabalhar numa fazenda próxima a Vila de Nossa Senhora da Luz, atual Curitiba.
Este fazendeiro tinha uma filha linda chamada Carolina, que se apaixonou pelo escravo sobrenatural. Ao descobrir a paixão da filha, mandou o pobre negro levar mil chibatadas. Yobanhô milagrosamente sobreviveu. Carolina insistia em seduzi-lo e como este se negou, mentiu para o pai que estava grávida de Yobanhô. Assim, o fazendeiro matou o escravo com vários tiros e enterrou seu corpo na própria fazenda.
Muito tempo se passou, a Vila Nossa Senhora da Luz virou Curitiba e a fazenda passou a pertencer ao município de Araucária. Vendida para um casal com filho pequeno, a fazenda viria a se tornar no futuro a danceteria Studio Flash, atormentada pelo fantasma de Yobanhô, o Escravo Sobrenatural.
Noiva da Cachoeira
Segundo conta o povo, esta seria a lenda mais antiga de Araucária identificada pela primeira vez no século XIX. Uma noiva da Lapa iria se casar no Município. Abandonada no altar, ela tentou voltar para a Lapa à pé. Quando chegou na região de Contenda, a noiva perdeu o véu e morreu logo em seguida.
Diz a lenda que seu véu se transformou numa cachoeira, pois o corpo da noiva foi encontrado sem o véu e ao lado de uma cachoeira de que não se tinha registro antes. A cachoeira é real e fica na divisa entre Araucária e Contenda.
Piano fantasma do Szymanski
Segundo a lenda, o velho piano que há muitos anos está no Colégio Estadual Professor Júlio Szymanski, toca sozinho. Um certo dia, no meio da madrugada, as pessoas começaram a ouvir uma música sendo tocada no velho piano. Numa determinada noite, um guarda teria visto uma menina afrodescendente tocando. Diz a lenda que a garota teria pedido desculpas e sumido no corredor do colégio.
Outros que contam a lenda dizem que a menina viveu no século XIX, era filha de uma escrava e tocava piano na casa grande em que trabalhava. A menina morreu de meningite no casarão e o piano doado ao colégio teria sido dos patrões dela.
O fato real é que até hoje não se tem conhecimento de quem trouxe este piano para o colégio. Ele está posicionado próximo à sala dos professores e os alunos podem dedilhá-lo nos intervalos.
Casarão da Família Bettega
O casarão dos Bettega ficava na Avenida Primeiro de Maio, no bairro Estação. Diz a lenda que a casa serviu de moradia para várias famílias, inclusive a do Lutero, que faz parte do corpo de baile do Teatro Guaíra e do Sr. Julio Padeiro e família, porém nenhuma dessas famílias teriam sido importunadas pelo sobrenatural.
Alguns diziam que na janela do sótão havia uma mulher vestida de branco e uma criança junto, e outros diziam ver uma mulher vestida de noiva, que sempre estava na janela. Outros ainda diziam que teria ocorrido um casamento na casa e que durante a festa a noiva se retirou para ir à casinha e foi seguida por um dos convidados, que a estuprou e em seguida fugiu. Quando ela retornou para a festa estava chorando e machucada, e quando contou o que aconteceu, o noivo abandonou a pobre coitada porque ela havia perdido a virgindade. Conta-se que outras pessoas, inclusive da própria família, passaram a hostilizar e ofender a noiva abandonada. A moça com vergonha, dor e desespero, pegou uma corda e enforcou-se. Uns dizem que ela se enforcou no sótão e outros dizem que foi na árvore dos fundos. Contam ainda, que um menino a achou, o que explicaria a criança sempre junto na janela.
Nunca ninguém mencionou o nome da moça ou da família, muito menos do noivo e do estuprador, embora alguns diziam que era um tio e padrinho dela.
Cemitério dos Palhanos
O cemitério possui diversos túmulos, bastante antigos, com inscrições ucranianas, e também é conhecido como Cemitério dos Jesuítas. Fica no Rio Abaixinho e está abandonado por várias décadas, com suas lápides e cruzes escondidas em meio à mata. Várias vezes já foi utilizado por pessoas maldosas para a prática de “feitiçarias”. Seu aspecto de abandono faz parecer que o lugar é mal assombrado.
Há datas tão antigas nas lápides, que mostra que um século antes da imigração para a cidade de Araucária, alguém já esteve por lá e começou a escrever a história da cidade, fato que pode ser lido no Livro “A Saga de Araucária”, de autoria do saudoso historiador Romão Wachowicz, que relata fatos sobre este local.
Nos idos de 1969, o Cemitério dos Palhanos ficou conhecido pela imprensa por seus supostos fantasmas, enforcados e sangue fresco saindo dos túmulos.
Fantasma do CAIC
Um vídeo de um ambiente escuro, com luzes piscando e uma porta batendo ininterruptamente, que viralizou nas redes sociais, acabou entrando para a lista de histórias mal contadas, que acabam virando lendas. O caso teria ocorrido no antigo Centro de Atendimento Integral à Criança e ao Adolescente de Araucária – CAIC. Uns apostam na existência de um fantasma, outros dizem que tudo não passou de uma armação, de uma farsa.
No vídeo aparecem dois guardas noturnos que gravam o momento em que ouvem um barulho no corredor do imóvel. Curiosos, eles trataram de registrar o acontecido com aparelho celular, e no vídeo ‘’assombroso’’, é possível perceber que a porta de um compartimento onde se guarda a mangueira contra incêndio batia com força e as luzes do corredor piscavam.
Assustador é quando eles chegam até o local e as luzes apagam e eles verificam que não há ninguém no recinto. No entanto, não se sabe ainda a veracidade das imagens que mostra um agente de segurança segurando uma lanterna enquanto se aproxima, ao lado de outro agente que grava a cena, da porta controlada pelo “fantasma”.
Bailarina Jussara Ivone de Leon Bordes: uma história digna de ficção, porém real
Lendas são narrativas transmitidas oralmente pelas pessoas com o objetivo de explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Para isso, há uma mistura de fatos reais com imaginários. Misturam a história e a fantasia. As lendas vão sendo contadas ao longo do tempo e modificadas através da imaginação do povo. Nesse contexto se encaixa a lenda da primeira bailarina de Araucária: Jussara Ivone de Leon Bordes. Ela nasceu em 17 de junho de 1931 e morreu em 17 de dezembro de 1968, estreou nos palcos no Cine Teatro Araucária, onde foram realizados os primeiros eventos e shows na cidade, organizados pelas irmãs do Sagrado Coração de Jesus.
Jussara não só dançava muito bem como também se destacava na música, no canto e nas artes cênicas. Conta a história que ela era uma mulher à sua frente, que irradiava e contagiava a todos com sua beleza e descontração, primeiramente com seus familiares e depois com quem ela convivia. Exuberante em suas artes, foi conquistando cada vez mais um expoente que a fez perceber que Araucária estava ficando pequena para ela e para todo seu talento, conquistando assim o público brasileiro. De forma inédita, não demorou para chamar atenção com suas performances impressionantes e brilhantes diante dos palcos e dos microfones com suas admiráveis apresentações.
Tudo isso a levou ao reconhecimento e a fez conquistar o público pela Atlântida Cinematográfica. As pessoas no início não acreditavam na possibilidade do apogeu que ela atingiria e ela sofreu preconceitos. Até hoje muitos ainda não sentem, ou fingem não sentir, ou ainda sentem, mas oprimidos pela pós-moralidade (característica de cidades provincianas), preferem não falar de Jussara Ivone de Leon Bordes.
Mas esses fatos, ao invés de oprimir Jussara na época, a impulsionaram para além dos limites de Araucária, para longe dos julgamentos morais. Jussara foi convidada a integrar o corpo de balé do Clube Curitibano, apogeu dos anos 50. Ousada, conheceu a língua espanhola e adquiriu muitos outros conhecimentos. Desbravou fronteiras do Brasil, encantou argentinos, uruguaios e paraguaios com seus dotes de artistas, avançou sua carreira com turnês internacionais, inclusive assinou contrato para participar de longos cruzeiros mundo afora.
Infelizmente seu tempo de vida foi muito curto e sofrido para tanto talento e tanta expressão. Sendo alvo de preconceitos de todos os tipos e de todas as formas, já não era considerada pelo meio familiar socialmente, ainda assim, na década de 50 ingressou no teatro de revista, trabalhando e sendo dirigida por artistas aclamadas como Ruth Escobar, Íris Bruzzi e Dercy Gonçalves. Descoberta por olheiros foi fotografada por revistas renomadas da época como Cruzeiro e Singra. Foi vencedora de concursos de vários aspectos, o que lhe renderam o convite para ingressar na Atlântida Cinematográfica.
Passou a se apresentar nos cassinos do Norte do Estado e estabeleceu residência em Londrina, onde casou-se, teve um filho e ficou viúva logo em seguida. Um tempo depois enfrentou fases dramáticas da sua vida pessoal e iniciou um lento adormecer de vida até sua morte.
Sua última relação com Araucária foi em 1990, durante as organizações dos 100 anos da cidade, através de um concurso público para sugestões de nomes para um novo teatro. O nome de Jussara foi escolhido em audiência na Câmara de Vereadores e aprovado por unanimidade, porém estranhamente, foi revogado uma semana depois em nova audiência extraordinária e foi definido o nome como Teatro da Praça.