Em 7 de março de 1763, Manoel Cunha Reis, da antiga Freguesia de São José – hoje cidade de São José dos Pinhais, na época parte de Curitiba como uma localidade distante – apresentou uma denúncia ao juiz ordinário e presidente da Câmara de Curitiba, o capitão Manoel Gonçalves Sampaio. De acordo com Reis, havia feiticeiras à solta na Freguesia de São José.

O queixoso Manuel Cunha Reis reclamou que sua esposa e as quatro irmãs dela estavam sofrendo de malefícios diabólicos. Nas suas palavras, elas “lançavam por cima e por baixo coisas estranhas à natureza humana, como são penas de aves, cascos e dentes de animais, pedaços de sapos, baratas, gafanhotos, e até mesmo um camaleão”. Além disso, as mulheres estavam esmorecidas e sofriam de sonolência constante.

De acordo com a jornalista da Câmara Municipal de Curitiba, Fernanda Foggiato, “o juiz Sampaio atendeu à queixa de Manoel Cunha Reis e instaurou a devassa para investigar o delito de feitiçaria.” Foram ouvidas 33 testemunhas, sendo 31 homens e apenas 2 mulheres.

Dentre as 8 denunciadas estava Cipriana Rodrigues Seixas, parda forra, ou seja, mulher negra livre, que pode ter sido escravizada e conquistado a sua liberdade, ou já ter nascido livre. Cipriana era casada e mãe de três filhos.

Com a instauração da devassa, outras 7 mulheres indígenas administradas, ou seja, escravizadas, foram denunciadas. Todas as sete tinham um grau de parentesco: havia tias e sobrinhas, mães e filhas.

Das 33 testemunhas, 20 delas disseram apenas “ouvir dizer” que as acusadas eram feiticeiras. Lembrando que as acusadas eram 1 negra forra e 7 mulheres indígenas administradas, vivendo em condições precárias, enquanto os acusadores eram, na grande maioria, “homens bons”, parte da elite da região.

De acordo com um dos acusadores, havia um “cartório das feitiçarias”, o que inspirou a brilhante tese de doutorado da professora de História do Direito Danielle Regina Wobeto de Araújo, autora da tese “Um Cartório de Feiticeiras: Direito e Feitiçaria na Vila de Curitiba (1750-1777)”. O termo cartório, nesse caso específico, insinua uma reunião de feiticeiras.

A feitiçaria era considerada crime para os três tipos de justiça: a eclesiástica, a inquisição e a secular. A inquisição estava mais interessada nas heresias, para além dos delitos de feitiçaria, como sodomitas, cristãos-novos, muçulmanos e protestantes. Os inquisidores procuravam a heresia envolvida na feitiçaria, como o culto ao diabo ou a outros deuses, a exemplo de rituais indígenas e afro-descendentes na América Portuguesa (ARAÚJO). O foco da justiça eclesiástica eram os pecados capitais relacionados à feitiçaria, como ira e luxúria. Já para a justiça secular, a preocupação maior estava nos prejuízos materiais causados pelo delito.

Aqui em nossas bandas, a justiça que ficou responsável pelo caso das 8 denunciadas foi a secular, representada pela Câmara de Vereadores.

Interessante que muitas denúncias sobre os malefícios sofridos envolviam vômitos e lançamentos por baixo, como podemos conferir nos seguintes trechos: “lançara por baixo um bicho chamado camaleão, e que botando-se este em fogo, saltara para fora”; no caso do vômito, “coisas estranhas à natureza humana, como eram pedaços de rãs” e “as mesmas porcarias e caroços de pêssegos”.

Sobre a negra forra, Cipriana Rodrigues Seixas, o minerador João Simões da Costa “ouviu dizer que ela matou Maria Diaz por meio de farinha de mandioca envenenada ou enfeitiçada, como também matou um negro escravo de Thereza Correa, chamado Julião” (ARAÚJO).

Com relação às sete indígenas escravizadas, todas foram pronunciadas e enviadas a Paranaguá, cabeça da comarca, onde o ouvidor estabeleceria as penas, podendo ficar na prisão de Paranaguá ou ter a condenação revisada.

Como Cipriana estava grávida, não foi enviada para Paranaguá, devendo ficar presa em Curitiba. De acordo com a doutora Danielle Regina, em entrevista ao canal da Câmara Municipal de Curitiba, provavelmente, após o nascimento do filho de Cipriana, ela foi posta em liberdade, vivendo na mais absoluta miséria. Dez anos depois, em 1773, o ouvidor de Paranaguá considerou irregular a liberdade de Cipriana, que voltou à prisão. Testemunhas diziam que eram vizinhas dela fazia 6 anos, no rocio da Vila de Curitiba. Não quis voltar para a Freguesia de São José, onde era mal falada. Estava envelhecida e vivendo na mais absoluta pobreza. Não sabemos qual foi a sentença final proferida do ouvidor.

Imagem e texto da jornalista Fernanda disponíveis na página da Câmara Municipal de Curitiba.

FOGGIATO, Fernanda. Halloween em Curitiba: a história da bruxa Cipriana e do Cartório de Feiticeiras.

Curitiba: Câmara Municipal, disponível no endereço eletrônico:

https://www.curitiba.pr.leg.br/informacao/noticias/halloween-em-curitiba-a-bruxa-cipriana-e-o-cartorio-de-feiticeiras.

TESE DOUTORADO. ARAUJO. Danielle Regina Wobeto De Araujo. Um “Cartório de feiticeiras” : direito e feitiçaria na Vila de Curitiba (1750-1777). Curitiba: UFPR, 2016, disponível no endereço eletrônico: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/45470

Edição n.º 1487.