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Moradia subterrânea dos índios tinguis, conhecida como “Buraco de Bugre”. Foto: divulgação
Quem eram e o que houve com os fundadores de Araucária?
Moradia subterrânea dos índios tinguis, conhecida como “Buraco de Bugre”. Foto: divulgação

Eles estão no hino de Araucária, nas construções que inspiraram a Aldeia da Solidariedade e em nomes de ruas ou bairros da cidade. Mas, no final das contas, o que aconteceu com os Tinguis, primeiros habitantes dessa região? Diferente de outras comunidades do Paraná e do Brasil, que ainda têm a presença de tribos indígenas ou de resquícios culturais evidentes, em Araucária a sensação é de que estes povos originários simplesmente desapareceram — o que não é verdade.

Pesquisas arqueológicas realizadas ao longo do rio Passaúna mostraram que os primeiros habitantes da região de Araucária viveram aqui há mais de 4 mil anos. Segundo Igor Chmyz, arqueólogo e pesquisador do grupo responsável por essas descobertas, a hipótese é de que esses índios se deslocavam com frequência, porque dependiam dos recursos naturais para sobreviver. As moradias eram subterrâneas, cobertas por palha e a tribo se dividia entre caçadores e coletores, a agricultura ainda não era desenvolvida.

Fundadores do Tindiquera

Quem eram e o que houve com os fundadores de Araucária?
Tradicional arco de duas cordas usado pelos índios Tinguis e pedras polidas para criação de instrumentos, guardados no Museu Tingüi-Cuera.

Estes povos indígenas viviam em aldeias dispersas e, com o tempo, começaram a desenvolver agricultura e técnicas ceramistas. Por meio da análise de cerâmicas, Chmyz constatou a presença de dois povos predominantes na região, os Jê e os Tupi-guarani. Os Tinguis são provavelmente descendentes ou chegaram a conviver com esses povos indígenas. Eles nomearam a região como “Tindiquera”, originalmente escrita como “Tinguiquera”, que significa “Pertencente aos Tinguis”.

Os Tinguis eram conhecidos por ter nariz afilado, praticar silvicultura e difundir a cultura ceramista. Eles usavam um tradicional arco de duas-cordas para caçar e suas moradias subterrâneas eram conhecidas como “buracos de bugre”. Documentos do arquivo histórico de Araucária registram que foram encontradas em propriedades rurais resquícios de utensílios domésticos como machadinhas de pedra lisa, cacos de potes de barro, lanças, entre outros. “Até hoje, se você perguntar para alguns agricultores da região se ele conhece algum buraco de bugre, é possível que ele te leve até um”, afirma Igor Chmyz.

Chegada dos colonizadores

Existem diferentes teorias para a dispersão dos povos na região de Tindiquera. A primeira, é que fugiram para não serem escravizados ou atacados por grupos de bandeirantes e colonizadores em busca de ouro na região, no século XVII. Alguns documentos do arquivo histórico de Araucária classificam essa hipótese como “forçada demais” ou, em outras palavras, improvável. Isso porque os Tinguis, predominantes na região, eram tidos como um povo pacífico e, de certo modo, acolhedor.

Ao contrário dos índios na região de São Paulo, que lutaram por suas terras e contra a escravidão, os registros históricos apontam que os Tinguis teriam aceitado a presença dos brancos e, inclusive, ensinado formas de sobreviver nas florestas, funcionando como uma “barreira contra povos hostis” para os colonizadores de Curitiba e região metropolitana. “Técnicas de caça, pesca, coleta e práticas agrícolas, devidamente adaptadas ao nosso bioma, em muitos casos só se tornaram acessíveis aos colonizadores graças aos ensinamentos tinguis”, descreve Rafael Almeida, professor do Colégio Júlio Szymanski e coordenador de Ensino de História da SMED

A segunda teoria é de que estes povos se afastaram porque preferiam não se misturar e interagir com aqueles diferentes dos seus. De qualquer forma, Igor Chmyz relata que evidências arqueológicas apontam um movimento de povos indígenas em direção ao interior dos planaltos paranaenses e ao sul, rumo a Santa Catarina, se juntando a outras tribos. Estes povos seriam de descendência Jê, linhagem original dos Kaingang e Xokleng.

Os Tinguis permaneceram na região de Araucária e estabeleceram uma convivência próxima dos portugueses e escravos africanos, onde teria início sua miscigenação.

Miscigenação e perda de cultura

O arqueólogo Chmyz também explica que a análise de cerâmicas permite saber em que momento começou a miscigenação com os colonizadores europeus. As peças perderam seus traços originais tupi-guarani, enquanto ganharam cada vez mais características europeias. “Na arqueologia, chamamos esse processo de assimilação. Identificamos essas cerâmicas como neobrasileiras”, conta. Igor ainda reforça que isso não ocorre com peças de características Jê, povo que se afastou com a chegada dos europeus.

A miscigenação deu origem a um “novo” povo: os caboclos. Documentos do Arquivo Histórico — responsáveis por reconstituir a memória da época — descrevem que os caboclos não eram considerados nem índios, nem brancos. Eles carregavam alguns traços de ambos, mas não chegavam a ter uma identidade definida porque não mantiveram contato com a cultura Tingui ou européia. No entanto, atribui-se a eles o motivo de índios Tinguis terem sobrevivido até a nova leva de imigração européia. Os caboclos teriam defendido os índios por compartilharem algumas tradições, como o hábito de caçar com os arcos de duas cordas, e características físicas.

Imigração européia

No final do século XIX, a região de Tindiquera já era conhecida como Freguezia do Iguassú e passava a receber imigrantes da Polônia, Ucrânia, Itália, entre outros países europeus. Essa nova fase da imigração trazia pessoas em busca de reconstituir sua vida e sair da situação de pobreza e fome que passavam na sua terra natal. Nessa época, a Europa também era assolada por doenças infecciosas, como tifo, influenza (gripe) e varíola.

Os patógenos dessas doenças também vieram nos barcos da imigração européia — e o efeito sobre os nativos brasileiros foi avassalador. Também majoritariamente pobres, vivendo em condições precárias e sem imunidade contra as novas doenças, índios e caboclos morreram em larga escala. Registros históricos afirmam que cemitérios precisaram abrir valas de covas coletivas para dar conta de todas as mortes no município, tanto dos nativos, como dos migrantes.
O último registro da presença de índios nativos do município de Araucária data do entorno de 1920 a 1925, logo após a disseminação da gripe espanhola. A última família de linhagem cabocla no Arquivo Histórico de Araucária data de 1970, seriam o senhor Nhõ Teotônio Pires e seus descendentes.

Resgate cultural

Em pleno século XXI, são poucos os resquícios desses povos indígenas em Araucária. Tânia Gayer, professora e historiadora, comenta que, de vestígios materiais, restam apenas objetos e pedras polidas guardados no museu Tingui-Cuera, no Parque Cachoeira. “Infelizmente ficaram poucas coisas desta tradição indígena, pela desvalorização e o menosprezo com os povos locais, responsável pela dispersão deles”, afirma.

Rafael Almeida aponta que algumas características culturais permaneceram com os caboclos e continuam vivas até os dias de hoje, principalmente nos hábitos alimentares dos paranaenses. “Milho, mandioca, pinhão, frutas silvestres, carne de caça, peixes da região e erva-mate… Tudo isso é legado gastronômico tupi-guarani, culinária tingui”, conta. Para o professor, resgatar esses traços culturais é um dever e serve para criar uma “noção de pertencimento, em que seus descendentes sintam orgulho da sua cultura, da sua ancestralidade, do seu lugar no mundo”.

O arqueólogo Igor Chmyz classifica o resgate cultural como construção de uma memória e humanização desses povos nativos. “Há muito tempo, a história dos municípios e estados começava com a cultura europeia, ignorando os indígenas como se eles não fossem ninguém. Esse trabalho significa completar a história, transformando em algo muito diferente do que estamos acostumados a ver”, reitera.

Texto: Lais Almeida, sob supervisão de Maurenn Bernardo

Publicado na edição 1273 – 05/08/2021

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