Trinta e um meu

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A casa em construção tinha um andar inteiro subterrâneo e, como sempre acontece em uma construção, aqueles ferros enferrujados saíam das paredes e junções, em diversos comprimentos, espessuras e graus de ferrugem.

Por ser subterrâneo, a luz também não chegava por completo ao local, fazendo com que sua maior parte estivesse em escuridão total e com que seus pontos mais iluminados fossem apenas uma leve penumbra.

Pelo chão, pedras pontudas e ferramentas diversas, como serrotes, enxadas, pregos, arames e mais uma gama de instrumentos afiados, cortantes, sujos e também enferrujados.

Mas como essa história aconteceu nos anos 90, a época em que não havia limite para a falta de noção ou de perigo, esse era o local perfeito para que meus amigos e eu nos reuníssemos para brincar.

Logicamente, as brincadeiras mais divertidas incluíam corridas por entre os locais mais escuros da construção, até chegar em algum ponto pré-determinado e tocar uma parede e gritar “trinta e um meu”.

Nesse dia estávamos especialmente velozes e o menino Ivens estava a cargo de procurar os demais. Se ele encontrasse um dos demais jogadores, ambos deveriam apostar uma corrida até a parede do fundo do quarto mais escuro.

Ainda se brinca disso?

Pois bem: estávamos todos escondidos fora da construção, em diferentes locais do terreno, atrás de algum monte de areia, de uma pilha de tijolos ou de uma árvore. Ivens terminou de contar até trinta e um, esse número escolhido com tanta precisão: são trinta e um segundos correndo para longe do ponto de partida. E se você for encontrado no seu esconderijo, serão trinta e um suados e anaeróbicos segundos que o separam do ponto de chegada, na volta.

Ivens encontra um dos participantes de tão saudável brincadeira dentro de uma manilha e a corrida começa. O encontrado leva algum tempo para sair da manilha e começar a empreender a corrida, mas sabe que compensará correndo mais rápido que Ivens.

Ao chegar no quarto, ambos agora cegos pela escuridão e pela necessidade de vencer a corrida, Ivens erra o cálculo e acerta a coxa, de frente, em uma ponta de ferro que sai da parede. O vergalhão entra na sua perna uns três centímetros e Ivens acusa o golpe, sentando no chão e dizendo ao oponente que algo está errado, ao mesmo tempo que segura o grito para não alertar os adultos.

O outro volta para dar a notícia do acidente aos demais jogadores, que em grave silêncio se reúnem para decidir o que fazer. O concílio convocado às pressas delibera que Ivens não pode mancar ao sair, mas que precisa de qualquer forma sair antes que alguém perceba. Ivens precisará ser forte, em nome do grupo.

Todos reunidos, fingindo naturalidade, acompanham Ivens até a esquina da rua de baixo, ele gemendo baixo mas aguentando firme e caminhando quase sem demonstrar dor.

Da esquina em diante Ivens já não é problema nosso e a brincadeira prossegue, agora com um a menos.

Publicado na edição 1123 – 26/07/18

 

Trinta e um meu

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