“A cadeia não tem que ser um hotel cinco estrelas, mas deve apresentar as mínimas condições para abrigar os detentos”
O juiz de Direito Ricardo Henrique Ferreira Jentzsch, responsável pela Vara Criminal da Comarca de Araucária, afirmou ao Jornal O Popular que o governo do Estado do Paraná é o grande culpado pela situação caótica observada na cadeia pública de Araucária. “A cadeia não tem que ser um hotel cinco estrelas, mas deve apresentar as mínimas condições para poder abrigar os detentos. A superlotação e a precariedade das instalações são frutos da ineficiência do Estado. O sistema prisional está um caos”, disse o magistrado.
Ele, que já comandou varas criminais e cíveis em diversos municípios do Paraná, assumiu a Vara de Araucária no dia 2 de abril de 2013, com a missão de botar a casa em ordem e desencravar processos que estavam encalhados há anos em virtude de Araucária não ter um Juízo exclusivo para cuidar do setor criminal, o que só passou a acontecer em agosto de 2011.
À nossa reportagem, o juiz titular da Vara Criminal explicou sobre os motivos que o levaram e determinar a interdição de parte da carceragem local e quais os projetos que pretende implantar a fim de tentar resolver a questão da superlotação e também para melhorar as condições físicas e estruturais da cadeia. Abaixo, os principais pontos da entrevista:
Jornal Popular: Há algumas semanas o senhor interditou parte da carceragem da Delegacia de Araucária. Quais os motivos que o levaram a tomar esta medida? Esta decisão teria obrigado o governo do Estado a transferir boa parte dos presos que estavam aqui irregularmente?
Ricardo Jentzsch: Quando assumi a Vara Criminal, no dia 2 de abril de 2013, iniciei uma prática que adotei nas demais Varas que trabalhei, a de fazer visitas mensais nas delegacias, o que é uma obrigação dos juízes e uma determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E durante as inspeções que fiz na DP de Araucária, pude constatar a precariedade existente na carceragem. Em virtude disso, em meados do ano passado, instaurei um pedido de providência, onde determinei várias medidas que deveriam ser adotadas. Determinei a expedição de ofícios ao secretário de Estado da Segurança, ao secretário de Estado da Justiça, ao governador do Estado, comunicando sobre a precariedade do local, sobre as falhas elétricas e hidráulicas e principalmente sobre o número de vagas, que é insuficiente comparado ao número de detentos. Quando assumi o cargo, havia cerca de 99 presos para uma capacidade projetada de 18. A cadeia nunca foi um hotel, e nem estou aqui pra pedir que seja, o que me preocupa é o fato de que já foram tomadas todas as medidas judiciais que me são permitidas e que me competem enquanto juiz corregedor dos presídios, isso na esfera administrativa, e nada foi feito pelo Governo do Estado. Também determinei o envio de cópia de todo procedimento ao Ministério Público, que é quem detém competência para ajuizar uma ação civil pública, e ao juiz da Vara Cível para a qual for distribuída a ação (temos duas aqui em Araucária), se assim entender, poderá determinar que se construa uma nova cadeia aqui na cidade. Devo frisar que minha competência é verificar a situação, comunicar os órgãos competentes e interditar a cadeia, não mais do que isso. Quando instaurei este pedido de providência tinham sido registradas umas duas tentativas de fuga e apreensão de celulares na carceragem, e tudo isso foi comunicado. A mais grave delas, que ocorreu no dia 8 de janeiro deste ano, quando os presos cavaram um buraco enorme em uma das celas e, por pouco não conseguiram fugir, foi a que me levou a interditar parte da carceragem. Diante de toda esta situação que já havia sido exposta e comunicada aos órgãos competentes, também comuniquei o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que na ocasião determinou que fosse feita uma inspeção local na cadeia e também que o Tribunal de Justiça do Estado, através de seu presidente, entrasse em contato com o governador e desse uma atenção especial para a cadeia pública de Araucária. O presidente do TJ fez este contato, tanto que o juiz da Vara de Execuções Penais falou comigo perguntando o que a gente precisava fazer, e foi então que aconteceu a remoção dos presos, isso após a tentativa de fuga do dia 8 de janeiro.
É tão complicado assim conseguir a remoção de presos?
Remover presos é a maior batalha que temos hoje, porque antigamente, quando não tínhamos o Depen (Departamento Penitenciário), que hoje é responsável pela Central de Vagas em todo o Paraná, era o juiz da Vara de Execuções Penais que tinha competência para cuidar disso. Você ligava para o colega da Vara de Execução do seu polo, falando que precisava de uma vaga temporária para fazer reformas ou qualquer outro procedimento na cadeia, e ele abrigava os presos na sua delegacia de competência. Um ajudava o outro. Era muito mais fácil. E toda vez que um preso de fora chegava à minha delegacia com cumprimento de mandado, eu era comunicado imediatamente, e como tinha autorização judicial, ligava para um colega e perguntava como estava a cadeia dele, e juntos decidíamos uma vaga para este preso. Atualmente, como é o Depen que comanda tudo isso, caem presos aqui que não tem vínculo nenhum com a cidade. Temos várias situações destas em Araucária. Inclusive nesse procedimento que encaminhei recentemente, determinei que fosse feita a remoção de todos eles. Hoje, quando o governo do estado ou a Secretaria de Justiça falam que o Paraná não tem problema de vagas, não sei de onde eles retiram estes dados. Pode ser que no sistema penitenciário, que já abriga presos condenados, efetivamente tenha esse número. Desconheço isso e não posso falar mais a respeito. Mas dizer que não temos problema de vagas nas cadeias, me parece absurdo, pois converso com vários colegas de profissão e não conheço nenhuma cadeia que esteja dentro de sua população carcerária adequada, todas estão sobrecarregadas e lotadas. Desconheço de onde foram tirados esses dados que foram apresentados recentemente pelo governo do estado. Pra se ter uma ideia da dificuldade que é remover um preso, quando teve a tentativa de fuga em janeiro, entrei em contato com o secretário de justiça pessoalmente, onde conversei com seu substituto na ocasião, por mais de 15 vezes, pra conseguir a remoção de 50 detentos para a Casa de Custódia de Piraquara. Naquela ocasião, estávamos com 76 detentos para um lugar com capacidade para 18. Nesta mesma decisão, interditei parcialmente a carceragem, porque não podia interditá-la de forma total. Se fizesse isso, onde iríamos colocar os presos que iriam cair, pois todos os dias têm flagrantes.
Os pedidos de providência que o Senhor encaminhou ao Depen, às secretarias de Justiça e de Segurança e ao governador do estado obtiveram alguma resposta?
Foram vários pedidos. No documento que encaminhei no dia 27 de agosto do ano passado fui mais enérgico e determinei que não fossem aceitos presos por remoção ou qualquer outro procedimento nesse sentido nessa cadeia local. Tentei evitar que presos que não tenham vínculo processual nessa vara criminal, viessem para cá e que os mesmos deveriam ser removidos para suas comarcas de origem. Também determinei a remoção de todos os presos que aqui já se encontravam e que não tinham vínculo com essa vara criminal, pois tínhamos presos definitivos, já com sentença. Eles estavam cumprindo pena aqui e essa pena tem que ser cumprida na penitenciária. Em dezembro estávamos sem presos definitivos aqui, só que outros já caíram e até a semana passada, tínhamos 37 detentos na cadeia local, sendo quatro deles já com sentença. Mas já estamos pedindo a remoção dos mesmos. Enfim, mandei intimar pessoalmente o presidente do TJ, o secretário de Justiça, o Depen e todos os demais órgãos competentes, para se manifestarem. Também mandei comunicar ao Conselho Nacional de Justiça, e isso levou o presidente do TJ a entrar em contato com o governador e foi então que obtivemos uma resposta. Vale ressaltar que foi a única resposta que recebemos até hoje, onde eles afirmaram que estão sendo tomadas as medidas para implantação dos pedidos, mas até agora não fizeram nada. Na ocasião da interdição, ainda tentaram recorrer da minha decisão para indeferir a liminar. O TJ até concedeu, mas logo em seguida revogou a liminar e restabeleceu a decisão.
De todas as cadeias públicas que o Senhor já visitou, a de Araucária seria uma das piores?
De todas as comarcas por onde passei, sem dúvida, a cadeia de Araucária é a mais insalubre. Foi por isso que comuniquei várias vezes todos os órgãos competentes e eles não mexeram sequer um palito. Na última tentativa de fuga, o delegado local, vendo a situação e por vontade própria, fechou o buraco com cimento para tentar resolver de forma paliativa o problema. Ele estava preocupado com a estrutura da carceragem, que novamente estava enchendo de presos e precisava de mais espaço. Com isso, parte dos detentos teve que ser colocada no mesmo local onde foi cavado o buraco. Mesmo assim, o Estado não fez nada.
De que maneira o Poder Judiciário e a sociedade como um todo podem colaborar no convencimento e pressão das autoridades competentes para que a situação seja revertida?
Estou tentando junto ao Conselho da Comunidade, que foi reativado recentemente, uma reunião com o secretário municipal de Obras e com o prefeito, mesmo que a competência em resolver a situação seja única e exclusivamente do governo do estado. Precisamos nos mobilizar e ver se há possibilidade de fazermos alguma coisa, pois já ficou claro que esperar uma solução por parte do governador não adianta. Não podemos ficar adiando o problema porque já conseguimos uma interdição, temos que tentar resolver a situação. Este contato com o Poder Executivo local deverá ser feito até sexta-feira (hoje). Tudo que eu podia fazer no aspecto administrativo já foi feito e talvez até extrapole a minha competência esta reunião com o Poder Executivo local, mas vamos tentar.
Hoje a necessidade maior da cadeia de Araucária seria uma simples ampliação ou a construção de um novo prédio?
Precisamos de uma nova cadeia, não temos um local para banho de sol, não temos um local para visitação de familiares, porque não podemos nos esquecer que os presos tem filhos, tem família. No final do ano passado fizemos uma festa de Natal para que os filhos pudessem ver seus pais e precisou toda uma manobra, tivemos que movimentar todo o aparato policial, pois não havia espaço na Delegacia para isso. Mais uma vez friso que a cadeia não tem que ser um hotel cinco estrelas, mas também não pode ser um local insalubre como é hoje, sem as mínimas condições de higiene.
Há alguns anos foi feita uma reforma da DP e a construção de um solário, custeadas com recursos de um fundo gerido pelo Conselho da Comunidade. Esta seria uma alternativa para a reforma da DP?
Lembrando que este solário não está funcionando. Infelizmente essa prática não pode mais ser feita, é vedada por lei porque o Conselho da Comunidade tem por finalidade reverter o dinheiro que é arrecadado em prol dos presos. Cuidar da estrutura da cadeia é obrigação do Estado. O correto seria reverter esse dinheiro, que é decorrente de multas aplicadas em suspensão condicional de processos e do patrocínio de algumas empresas, em melhorias para os presos, por exemplo, na implantação de uma horta comunitária, que possa trazer benefícios para o município. Já temos um projeto para isso e ele está bem encaminhado junto ao Conselho. Estava tudo muito parado aqui na Vara Criminal de Araucária e tínhamos uma sensação de insegurança muito evidente na cidade. A população precisa sentir na Justiça uma sensação de segurança.
Desde que Araucária passou a ter uma Vara Criminal específica, isso em 2011, passamos a ouvir falar mais da figura do juiz criminal. O Senhor chegou aqui em abril do ano passado e no segundo semestre promoveu um mutirão de júris para julgar casos antigos, algo que nunca aconteceu na cidade. Como está a Vara hoje? Já é possível voltar os olhos somente para os casos mais recentes ou ainda tem muita coisa atrasada?
Quando cheguei aqui a Vara Criminal estava totalmente abandonada, com uma estrutura deficitária, algo até inexplicável. Imediatamente fizemos algumas reformulações, com apoio do TJ e da Corregedoria. Elaboramos um levantamento estrutural que apontou onde estavam os gargalos e o encaminhamos à Corregedoria. Vários problemas foram detectados já com as soluções que poderiam ser tomadas. Assumi em 2 de abril e em meados de maio encaminhamos este pedido. Em junho foram disponibilizados dois servidores para a Vara local e em julho vieram mais dois. Nesse meio tempo também tivemos alguns servidores daqui que foram remanejados, mas conseguimos fazer uma estruturação e dar vazão aos processos, que estavam todos paralisados. Foi um trabalho de formiguinha. Fizemos então um novo levantamento e encaminhamos à Corregedoria. Era uma vara desacreditada, mas o quadro poderia ser revertido. Trouxe um escrivão da Vara Criminal de São José dos Pinhais para treinar meus servidores que tinham sido nomeados de forma emergencial, sem treinamento, e todos abraçaram a causa. Também estabelecemos a prática de fazer reuniões mensais. Fizemos um mutirão pela Escola de Servidores, que durou 90 dias, tudo com aval e apoio do TJ e da Corregedoria. Quando assumi, a Vara tinha cerca de cinco mil ações penais em trâmite e estas foram sendo sentenciadas e arquivadas. Hoje temos entre mil e 1.500 ações. A nossa Vara não anda sem audiências, por isso já tenho audiências marcadas para 2015, com elas acontecendo todos os dias. O mínimo são três audiências ao dia. Criei a semana do júri, que acontece todos os meses, inclusive a próxima será entre os dias 17 a 21 de fevereiro. Também apresentei a proposta para montar uma pauta dupla fazendo com que as audiências previstas para 2015 aconteçam agora. Mas para isso o TJ teria que designar mais um juiz substituto, para que possamos montar duas salas de audiências, na chamada pauta dupla. Isso reduziria a minha pauta e ao mesmo tempo o número de ações, porque o objetivo é não deixar prescrever o crime. Felizmente o TJ acatou nosso pedido e já designou uma juíza substituta, que deverá chegar nos próximos dias. Se tudo der certo, deveremos iniciar esta pauta dupla no dia 26 de março. A ideia é manter a média de 900 a mil ações pendentes, menos que isso será difícil, pois ao mesmo tempo que saem ações, entram novas.
Qual é hoje, pela vivência do Senhor, o tipo de crime mais comum em Araucária?
O crime mais comum é, sem sombra de dúvida, o tráfico, que assola não só Araucária, mas todo o país. O tráfico geralmente é o pivô dos demais crimes que ocorrem. Sem medo de errar, cerca de 70% dos casos que recebo estão ligados ao tráfico.
Acompanhando o setor policial de nossa cidade, vemos que poucos casos de homicídio são solucionados pelas autoridades. Existe algo que o Poder Judiciário pode fazer para aumentar a eficiência das investigações feitas pela Delegacia de Polícia Civil?
Hoje temos muitos casos de crimes prescritos por deficiência da máquina judiciária e precisamos tentar consertar isso e não deixar que ocorra novamente. O Poder Judiciário não tem atribuição de investigar, não é nosso papel. Quem achar que o trabalho da polícia está deficitário deve comunicar isso à Corregedoria da Polícia Civil. À nós compete agilizar o julgamento dos processos e dar uma resposta para a sociedade. No ano passado, por exemplo, julgamos, após dois anos sem júris, cerca de 15 casos, entre os meses de abril e dezembro. Conseguimos dar resposta a vários processos que eram de 1996. Casos que chegaram ao ponto de a testemunha estar na frente da pessoa e sequer se recordar do crime. Isso não pode mais acontecer, é um absurdo!
Podemos afirmar que os problemas da Vara Criminal de Araucária estão quase resolvidos?
Podemos dizer que a Vara está saneada, mas não resolvida, pois só vai estar resolvida quando agilizarmos ainda mais os processos. Em 2009 o CNJ esteve aqui na cidade e constatou vários problemas na Vara Criminal de Araucária, que na ocasião foi tida como uma das piores, talvez a pior, Vara Criminal do Paraná. Não sou eu que estou dizendo isso, os dados constam no relatório do CNJ. Vários itens apontados foram resolvidos e estamos nos esforçando bastante para que a situação melhore ainda mais, porque ainda não está a ideal.